Passaram-se dois mil anos e essas palavras ainda ressoam nos nossos ouvidos: “dei-vos o exemplo”. A história da Igreja está cheia de santos, homens e mulheres que souberam dar a sua vida por Cristo, seguindo fidelissimamente o Senhor Jesus. Ao lado dos grandes exemplos de caridade e de serviço ao próximo, houve aqueles que não quiseram servir a exemplo do Senhor. Judas o traidor, Juliano o apóstata, tantos hereges e tantos cismáticos; tanta gente que nós não podemos julgar, mas que deixaram atrás de si a marca suja e nojenta de um contra testemunho que também perdurou.
Quanto se exige dos cristãos! Aqueles que nos olham desde fora, porque ainda não pertencem a essa grande família de filhos de Deus, gostariam de ver que nós somos mais desapegados dos bens materiais do que os outros, mais dados às obras de caridade; pedem de nós pureza de coração, castidade e uma vida de oração que seja condizente com aquilo que nós pregamos. Enfim, querem ver santidade em nós. Mas… dentro dos grupos da igreja, quanta rivalidade! Entre os movimentos, quantos desejos de ocupar o primeiro lugar para assemelhar-se às estrelas! Entre tendências legítimas, todas católicas, quanta falta de respeito à opinião dos irmãos! Em relação aos êxitos dos outros que trabalham por Cristo como nós, quanta inveja! Há muito que purificar, há muito que melhorar, há muito por amar.
Jesus pede a cada um de nós o esforço por lavar os pés dos outros, segundo o exemplo que ele nos deixou. Quanto custa!
A pergunta de Jesus ressoa até hoje e nos desafia:
“Vocês entendem o que lhes tenho feito?” Passados aproximadamente 2 mil anos, será
que de fato entendemos o gesto de Jesus? Para responder, seria necessário olhar
para a maneira pela qual vivemos em comunidade. Há comunhão ou divisão? Diálogo
ou monólogo? Partilha ou ostentação? Serviço ou busca de privilégios?
COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
Leituras: Ex 12,1-8.11-14; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15
Caros irmãos e irmãs,
Com a celebração
vespertina de Quinta-feira Santa iniciamos o Tríduo Sacro da Páscoa do Senhor.
Fazendo memória do que Cristo fez naquela que chamamos de sua última ceia,
queremos estar unidos a Jesus, que continua conosco no memorial de sua paixão,
no sacramento eucarístico que Ele próprio institui.
O rito de páscoa,
conforme consta na primeira leitura (cf. Ex 12,1-8.11-14), foi tirado de uma
celebração em que os pastores de ovelha nômades das terras de Abraão costumavam
celebrar para comemorar o fim do inverno e começo da primavera. Eram para eles
tempos de bons pastos para seus rebanhos e, por isso, chamava-se rito da
páscoa, ou seja, passagem. Os hebreus vão celebrar este mesmo rito dando um
novo significado, não mais como passagem de estação de tempo, mas como memória
de sua saída do Egito, onde estavam como escravos. Para que pudessem guardar na
memória este feito poderoso de Deus, os hebreus celebram a páscoa com o
cordeiro, o cabrito sem defeito, que morto naquela noite, simbolizava o momento
da libertação da escravidão do Egito para a terra da liberdade, chamada de
terra onde corre leite e mel, terra da fartura e da ação de Deus. Este
acontecimento se tornará tão importante que a ordem no final da leitura é
clara: “Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que
haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua” (Ex
12,14).
Esta mesma ordem o
Senhor Jesus deu aos discípulos ao instituir a eucaristia: “Fazei isto em
memória de mim” (Lc 22,19). Esta eucaristia que serve de alimento para
nossa vida foi instituída no clima da paixão já próxima. Nos relatos da ceia
que os evangelhos nos transmitiram encontramos os momentos dramáticos vividos
por Jesus. A angústia sofrida por Jesus é vivia em um ambiente de oração no
horto. Ele sente a fraqueza dos seus discípulos, mas quer deixar seu testamento
de forma definitiva. O pão e vinho que Ele transforma em seu corpo e sangue
define este testamento. É Eucaristia, ação de graças ao Pai por tudo que
aconteceu e pelo que está para acontecer. A Santa Missa é então a celebração da
Ceia do Senhor na qual Jesus, na véspera da sua paixão, “enquanto ceava com
seus discípulos tomou o pão…” (Mt 26,26). Antes de ser entregue, Cristo se
entrega como alimento.
O Evangelho lido nesta
celebração nos faz recordar a cena do lava-pés, onde exprime o mesmo
significado da Eucaristia sob outra perspectiva. Jesus se identifica como um
servo que os lava os pés dos seus doze apóstolos (cf. Jo 13,4-5). Com
esse gesto profético, Ele exprime o sentido da sua vida e da sua Paixão, aquele
do serviço a Deus e aos irmãos: “O Filho do homem, de fato, não veio para ser
servido, mas para servir” (Mc 10,45).
Nesta Última Ceia os
Apóstolos são constituídos ministros deste Sacramento de salvação e Jesus lava-lhes
os pés, e os convida a amarem-se uns aos outros como Ele também nos convida a
servirmos mutuamente, seguindo o seu próprio exemplo. O ato do Lava-pés
torna-se para o Evangelista São João a representação daquilo que é toda a vida
de Jesus: O levantar-se da mesa, o tirar a vestimenta da glória, o inclinar-se
para nós no mistério do perdão e do serviço.
No capítulo 13 do
Evangelho de São João, o lava-pés realizado por Jesus é apresentado como o
caminho de purificação. O Lavabo que nos purifica é o amor de Deus: o
amor que se empenha até a morte. A palavra de Jesus não é simplesmente uma
palavra, mas Ele próprio. E a sua palavra é a verdade e o amor. Na fé
cristã é o próprio Deus encarnado que nos purifica verdadeiramente. No texto do
Lava-pés, Jesus diz aos seus discípulos: “Vós estais puros” (v. 10). O dom da
pureza é um ato de Deus, que desce até nós, torna-nos puros. A pureza é
um dom.
Tendo como referência o
Sermão da Montanha, temos uma significativa expressão usada por Jesus: “Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Pode-se fazer aqui
uma referência também com a cena do Lava-pés: só se nos deixarmos sempre de
novo lavar, “tornar puros” pelo Senhor, é que podemos aprender a fazer,
juntamente com Ele, aquele que Ele fez. O importante é estarmos inseridos a
Ele. São Paulo, imbuído desta forte unidade com Cristo, disse certa vez:
“Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
O texto evangélico
menciona ainda o pano cingido, o que parece querer evidenciar a ação de Jesus.
Quando o texto diz que Ele havia terminado o lava-pés, ainda que retome o
manto, não se dirá que deixa o avental, o qual se converte, portanto, em
atributo permanente de Jesus (v. 12). O seu serviço não cessa com a sua
morte, porque ele continua conosco: “Eu estarei convosco todos os dias, até o
final dos tempos” (Mt 28, 20). Ao lavar os pés dos seus discípulos, não podemos
dizer que Jesus rebaixe, mas sim que não reconhece desigualdade ou hierarquia
entre os homens.
Ainda na cena do Lava
pés temos o diálogo de Jesus com Pedro. Jesus começa por Pedro a lavar os
pés dos Apóstolos, mas, inicialmente, deparamos com a recusa Pedro: “Jamais me
lavarás os pés” (v. 8). Para Pedro, esta atitude de Jesus contradiz a
ideia que ele tem da relação entre mestre e discípulo, contrasta com a imagem
do Messias que ele vê em Jesus. No fundo, a sua resistência ao lava-pés
tem o mesmo significado com a sua posição contrária ao anúncio que Jesus faz da
sua Paixão, depois da confissão em Cesareia de Filipe: “Deus não permita,
Senhor! Jamais te acontecerá!” (Mt 16,22). Agora diz: “Jamais me lavarás os
pés!” (Jo 13,8). Este protesto de Pedro tem a sua peculiaridade. Pedro tem
dificuldades de entender é que será através do sofrimento que o Messias deve
entrar na glória.
Depois que Jesus explica
a necessidade do Lava-pés a Pedro, temos a sua outra intervenção: Jesus deveria
lavar-lhe não só os pés, mas também as mãos e a cabeça. Mais uma vez, a
resposta de Jesus é significativa: “Quem se banhou não tem necessidade de se
lavar senão os pés, porque está inteiramente puro” (Jo 13,10). Nesta frase,
podemos supor que Jesus esteja fazendo uma referência ao batismo, pelo qual o
homem é imerso uma vez por todas em Cristo e recebe a sua nova identidade de
ser em Cristo.
Mas também os batizados
continuam pecadores, têm necessidade da confissão dos pecados que nos purifica
e nos faz restaurar nosso relacionamento com Deus. No batismo ficamos
completamente limpos; também nossos pés, ficaram “limpos”; mas os nossos pés se
apoiam na terra deste mundo, estamos em contato com as realidades humanas e
somos, de tal modo, tocados por elas. Somos fracos e com freqüência
também nós sujamos os nossos pés. Mas o Senhor todos os dias se inclina para
nós, pega uma toalha e lava os nossos pés. No Sacramento da confissão, o Senhor
lava sempre de novo os nossos pés sujos e nos prepara para a comunhão com Ele.
Também chama a nossa
atenção uma outra frase desta passagem evangélica: “Vós também deveis lavar os
pés uns dos outros… Dei-vos o exemplo…” (Jo 13,14s). Lavar os pés uns dos
outros significa, concretamente, aprender a humildade e exercer a bondade,
assim como Senhor tira a nossa sujeira com a força purificadora de sua bondade.
Lavar os pés uns dos outros significa, sobretudo, perdoar incansavelmente uns
aos outros, voltar a começar sempre de novo, ainda que pareça difícil ou
inútil.
Peçamos a intercessão da
Virgem Maria para que possamos todos os dias trilhar o caminho da pureza e que
o Senhor Jesus venha em nosso auxílio e também nos purifique e nos faça estar
sempre no caminho do bem e do serviço. Assim seja.
PARA REFLETIR
Nesta quinta-feira a liturgia nos faz recordar a instituição da
Eucaristia. Nela está radicado o novo mandamento que Jesus nos deixou: “Um
mandamento novo vos dou: Que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei,
vós também vos deveis amar uns aos outros” (Jo 13,34).
Antes de
instituir o Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue, inclinado e de joelhos, na
atitude do escravo, Jesus lava os pés dos discípulos no Cenáculo. Este ato, na
cultura hebraica, é precisamente um trabalho próprio dos servos e das pessoas
mais humildes da família.
Jesus
começa a lavar os pés por Pedro que, inicialmente, se recusa, mas o Mestre o
convence, pois, em um primeiro momento, Pedro não quisera que o Senhor lhe
lavasse os pés por estar invertendo a ordem, isto é, o Mestre Jesus ao lhe
levar os pés, estava assumindo as funções de um servo, isto é, contrastava
totalmente com o seu temor reverencial para com Jesus, para com o seu conceito
de relação entre Mestre e discípulo. Por isto, diz a Jesus: “Nunca me lavarás
os pés” (Jo 13,8). O seu conceito de Messias incluía uma imagem de grandeza
divina. Mas, na verdade, Pedro tinha que aprender sempre de novo que a grandeza
de Deus é diversa do nosso conceito de grandeza. A grandeza divina consiste
precisamente em descer, na humildade do serviço.
Logo
depois, porém, retomando as vestes e tendo-se posto de novo à mesa, Jesus
explica o sentido deste seu gesto: “Vós me chamais de Mestre e Senhor, e dizeis
bem, visto que o sou. Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre,
também vós devereis lavar os pés uns aos outros” (Jo 13, 12-14). Com este gesto
é ressaltado um aspecto bem específico da missão de Jesus: “Eu estou no meio de
vós como aquele que serve” (Lc 22, 27). Como discípulos de Cristo, nós
também somos chamados a este serviço. Estar a serviço do outro, constitui a
essência de todo aquele que quer seguir Jesus Cristo.
E podemos
perguntar: Em que consiste “lavar os pés uns aos outros”? O que significa
concretamente? Qualquer obra de bondade pelo outro, especialmente por quem
sofre, é um serviço de lava-pés. O Senhor nos limpa da nossa indignidade com a
força purificadora da sua bondade. Lavar os pés uns dos outros significa,
sobretudo, perdoar-nos uns aos outros. Significa purificar-nos uns aos outros,
suportando-nos mutuamente, para assim podermos ir juntos ao banquete de Deus.
O
verdadeiro discípulo de Cristo é, portanto, somente aquele que “toma parte” na
sua vicissitude. O serviço, com efeito, isto é, o cuidado das necessidades do
próximo, constitui a essência de todo o poder bem ordenado: reinar significa
servir. O ministério sacerdotal, cuja instituição hoje também celebramos,
pressupõe uma atitude de humilde disponibilidade, sobretudo para com os mais
necessitados. Só sob esta ótica podemos captar plenamente o evento da última
Ceia, que estamos a comemorar.
Também a
Quinta-Feira Santa é qualificada pela Liturgia como o dia em que Jesus Cristo
confiou aos Seus discípulos o mistério do seu Corpo e do seu Sangue, para que o
celebremos em sua memória. Ele instituiu o Sacramento da Eucaristia para estar
conosco. Em cada Santa Missa, a Igreja faz memória daquele evento
histórico decisivo. O sacerdote se inclina sobre os dons eucarísticos, para
pronunciar as mesmas palavras ditas por Cristo “na noite em que foi entregue”.
Ele repete sobre o pão: “Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós” (1Cor
11,24), e depois sobre o cálice com o vinho: “Este cálice é a Nova Aliança no
Meu sangue” (v. 25). A Igreja vive da Eucaristia e continua a celebrá-la
à espera do retorno do seu Senhor.
Os
Apóstolos tornaram-se, por sua vez, ministros deste expressivo mistério da fé,
destinado a perpetuar-se até ao fim do mundo. Tornaram-se contemporaneamente
servidores de todos aqueles que vierem a participar em tão grande dom e
mistério.
Acolhamos
em cada celebração eucarística este dom sempre novo; deixemos que o seu poder
divino penetre em nossos corações e nos torne capazes de anunciar a morte do
Senhor à espera da sua vinda. Por isto, diz os fiéis após a consagração
“Eis o mistério da fé!”. E os fiéis respondem: “Proclamamos, Senhor, a vossa
morte, e celebramos a vossa ressurreição, enquanto esperamos a vossa vinda
gloriosa”. É o resumo da fé pascal da Igreja que está contido na Eucaristia.
A Igreja
impõe aos fiéis a obrigação de participar na divina liturgia nos domingos e
dias de festa e de receber a Eucaristia ao menos uma vez em cada ano, se
possível no tempo pascal preparados pelo sacramento da Reconciliação. Mas lhes
recomenda vivamente que recebam a santa Eucaristia aos domingos e dias de
festa, ou ainda mais vezes, mesmo todos os dias (cf. CIgC 1389).
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