Chegados mais uma vez ao Domingo de Ramos, achei
pertinente visar, para uma pequena reflexão, um – se não o - elemento
proeminente dos santos mistérios deste dia. Creio que o seu significado, talvez
devido à familiaridade, seja ignorado por muitos Católicos. Refiro-me,
obviamente, aos ramos, que são abençoados e distribuídos neste dia.
Donde a presença dos ramos neste dia? Ora,
encontramo-los no Novo Testamento, dirão com certeza, e estão presentes na
entrada de Jesus em Jerusalém dias antes da Sua Paixão. Mas a pergunta que
coloco aqui é: por que ramos, especificamente? Olhemos para as perícopes da
entrada, em especial para aquelas que mencionam a existência de ramos – São
Mateus, São Marcos, e São João. Porque nos falam os evangelistas da presença de
ramos? Olhemos, não com familiaridade para estes textos, mas com olhos “novos”,
de quem os lê (ou melhor, ouve) pela primeira vez. Convido a encarar este
texto, não como um Católico do séc. XXI, mas como um Judeu do séc. I. O que a
nós poderá passar despercebido como um “mero detalhe” que dá origem a um
sacramental neste dia, para um judeu contemporâneo de Jesus encerava um
significado profundo. Creio que conhecendo o seu significado para um judeu nos
ajudará a entrar mais profundamente nos santos mistérios deste domingo.
A existência de ramos e gritos de Hosanna
remetem-nos para o festival de Sucot, geralmente referido como Festa das/dos
Tendas/Tabernáculos no Novo Testamento.
A observância de Sucot, cuja duração é uma oitava,
foi estabelecida por Deus aquando do estabelecimento da Aliança com Israel no
Monte Sinai, sendo uma das três festas de peregrinação obrigatória a Jerusalém.
A festa era, grosso modo, uma festa de natureza agrícola, pois calhava na época
da colheita (cf. Ex 23,16; 34,22); mas como toda a festa agrícola judaica,
estava revestida de significado religioso também. Servia para “fazer memória”
do tempo em que Israel vagueou pelo deserto, vivendo em tendas, antes de entrar
na Terra Prometida, quando Deus os fez sair da casa do Egito:
«Habitareis
nas tendas durante sete dias; todos os que nasceram em Israel deverão habitar
em tendas, para que os vossos descendentes saibam que fiz habitar em tendas os
filhos de Israel, quando os fiz sair da terra do Egipto.»
Estava prescrito a leitura da Lei durante a festa a
cada sete anos:
«Ao fim de
sete anos, na Assembleia do Ano da remissão, pela festa das Tendas, quando todo
o Israel comparecer diante do SENHOR, teu Deus, no lugar que Ele tiver
escolhido, farás a proclamação desta Lei a todo o Israel. Reunirás o povo,
homens, mulheres e crianças, e o estrangeiro que estiver nas tuas cidades, a
fim de que escutem, aprendam e reverenciem o SENHOR, vosso Deus, e cumpram
todas as palavras desta Lei. Os filhos deles, que ainda não conhecem, ouvirão e
aprenderão a reverenciar o SENHOR, vosso Deus, enquanto viverdes na terra de
que ides tomar posse, depois de passardes o Jordão.»
Era também uma festa que prefigurava/antecipava a
“colheita final” de Israel, quando este reuniria todas as nações em Deus. Dada
a grandiosidade da festa, e da alegria a ela associada, começou a ter ligações
à linhagem real: por exemplo, durante esta festa Salomão dedicou o Templo (1 Rs
8). Após o regresso do exílio na Babilônia, e com a ausência dum rei, a festa
foi ganhando conotações messiânicas. Já o profeta Zacarias nos fala do dia em
que as nações haverão de vir celebrar o Sucot a Jerusalém:
Os que
restarem de todas as nações, que tiverem marchado contra Jerusalém, irão todos
os anos adorar o Rei, o Senhor do universo, e celebrar a festa das
Tendas.
Era uma festa caracterizada por: alegria, “tendas”,
ofertas, e ramos. São estes últimos que nos interessam hoje.
No primeiro
dia, apanhareis belos frutos, ramos de palmeira, ramos de árvores frondosas e
dos salgueiros do rio; e regozijar-vos-eis na presença do SENHOR, vosso Deus,
durante sete dias.
Os ramos – lulav,
em hebraico – seriam de tamareira, e teriam murta e salgueiro atados
juntamente. Crê-se que estas plantas serviriam de recordação do tempo passado
no deserto, uma vez que correspondem a espécies comuns nesse ambiente. O lulav deveria ser apresentado pelos
fiéis no Templo todos os sete dias que durava a celebração de Sucot, e as crianças eram obrigadas a
levá-lo a partir do momento em que já conseguissem abaná-lo. Durante as
celebrações no Templo (cujos símbolos Jesus identificou consigo mesmo em São
João), o coro cantaria os salmos de Hallel
(de louvor) – os Salmos 113 a 118. Quando eram cantados os Hosannas no Salmo
118 toda a assembleia abanava os seus ramos em direção ao altar.
Como já referi, na época de Jesus, esta festa já
não estava associada ao rei “atual”, da casa de Davi, mas ao Filho de Davi que
haveria de vir. Sucot haveria de ser a única festa que perduraria no final dos
tempos, após a vinda do Messias; a grande festa de louvor em que Israel
finalmente consumaria as núpcias com o Seu Senhor. Não é por acaso que no livro
do Apocalipse nos surge a imagem da multidão composta por pessoas de todas as
nações diante do trono do Cordeiro, com ramos nas mãos:
Depois disto,
apareceu na visão uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as
nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé com túnicas brancas diante do
trono e diante do Cordeiro, e com palmas na mão.
Todo este simbolismo estaria presente na mente dum
judeu do primeiro século. A presença destes sinais na entrada triunfal não
implica a celebração da festa, mas o reconhecimento por parte do povo
israelita, em quem estas imagens estariam bem presentes, de que o Filho de Davi
tinha chegado, e que se iniciava o Sucot derradeiro (tal como São Pedro
perguntou se deveria montar tendas aquando da Transfiguração).
Chegado ao fim desta breve exposição histórica, o
que são para nós, então, os ramos que recebemos no Domingo de Ramos, que
levamos em nossas mãos em procissão, e que eventualmente levaremos para casa? Estes ramos são testemunhos da nossa fé no
Messias. São sinal de que o Filho de Davi salva. São reconhecimento do Cristo
Rei. A liturgia bracarense demonstra isto duma forma sutil na procissão,
através da cruz processional. Enquanto que no rito romano tradicional a cruz
está velada, uma vez que nos encontramos já dentro do tempo litúrgico conhecido
como "Tempo da Paixão", no rito bracarense a cruz é desvelada para a
procissão, demonstrando que esta é uma entrada triunfal, de alegria. Estes
ramos são uma lembrança de que, apesar de dentro de alguns dias o Senhor sofrer
a Sua Paixão, “Christus vincit, Christus
regnat, Christus imperat”. São
sinais escatológicos na medida em que revelam a nossa fé e esperança no Rei dos
Reis que há de vir no fim dos tempos, para consumar as núpcias com a Sua Noiva,
a Igreja, enxugando as nossas lágrimas.
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Salvem a Liturgia
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