Nestes dias de
Quaresma, queremos renovar a nossa fé através de uma vida penitencial mais
intensa, aproveitando os temas que a liturgia nos oferece, com orações mais
frequentes, jejuns e, sobretudo, uma vida de caridade mais aplicada – a
fraternidade.
A penitência e a prática que nos impomos, em
primeiro lugar, não são exclusivas deste tempo. Toda a nossa vida deve ser
imbuída deste espírito se quisermos seguir a Cristo. A ascese faz parte de
nossa caminhada espiritual. Porém, para vencer a inconstância, que é
característica do ser humano, são importantes tempos fortes para retemperar a
nossa vontade através de uma inteligência do mistério da cruz redentora. É um
tempo de retomar com mais vigor essa caminhada ascética.
São Paulo descreve essa fraqueza falando de si
mesmo, da luta interior que experimentamos para viver a fé: "Sabemos que a
Lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente
não consigo entender o que faço, pois não pratico o que quero, mas faço o que
detesto” (Rom 7, 14). E conclui: "Quem me libertará deste corpo de
morte"? (Idem, 24). Por isso se esforçava como aquele que corre no estádio
e castiga o seu corpo reduzindo-o à servidão (1Cor. 9, 24-27).
Nascidos no pecado e na concupiscência, como nos
lembra o salmista {salmo 51 (50)}: “Eis que nasci na iniquidade, minha mãe
concebeu-me no pecado", somente a conversão pode restituir-nos a vida,
integrando-nos no Reino da Graça.
A penitência é esse dom que recebemos e respondemos
com nosso esforço, que temos de fazer para vencer as fraquezas da carne, para
superarmos as paixões e vícios da natureza humana. Ninguém consegue sair de uma
prisão, de um atoleiro sem acolher uma boa notícia que o fortifique para dar
passos concretos, com sua vontade.
A própria vida de Cristo nos é um exemplo, como
ensina “A Imitação de Cristo”: "Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio;
e tu queres descanso e alegria" (L II, cap. 12). E, mais adiante, reitera
que não é próprio do homem carregar a sua cruz, mas "é por meio de muitas
tribulações que podemos entrar no Reino de Deus” (Atos, 14,21).
Poderia parecer, sobretudo em nossos dias, que esta
batalha interior e também exterior, pois somos uma unidade, espírito e matéria,
seria um contrassenso. Cada dia nos sentimos mais e mais capazes, mais
desenvolvidos cultural e fisicamente. Então, a cruz teria sentido?
Se o nosso horizonte se limitar ao nascer e ao pôr
do sol de uma vida, se não considerarmos nosso destino eterno, não tem sentido.
Seremos os mais tolos dos homens se nos dermos a estas práticas, responde São
Paulo.
Mas a Lei do Espírito da vida nos liberta da morte
e realiza em nós a esperança, que está no coração de todo homem e se transborda
por toda a natureza, da realização plena da liberdade e da paz na glória dos
filhos de Deus.
No sofrimento penitencial, na Cruz, unida ao
mistério redentor de Cristo, está a salvação, a vida, a força do espírito.
O jejum nos ensina que somos radicalmente
dependentes de Deus. Na Escritura, a palavra nephesh significa, ao mesmo tempo,
vida e garganta. A idéia que isso exprime é que nossa vida não vem de nós
mesmos, não a damos a nós próprios; nós a recebemos continuamente: ela entra
pela nossa garganta com o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que
respiramos. Jamais o homem pode pensar que se basta a si mesmo, que pode se
fechar para Deus. Quando jejuamos, sentimos uma certa fraqueza e lerdeza, às
vezes nos vem mesmo um pouco de tontura. Isso faz parte da “psicologia do
jejum”: recorda-nos o que somos sem esta vida que vem de fora, que nos é dada
por Deus continuamente.
A prática do jejum impede-nos, então, da ilusão de
pensar que a nossa existência, uma vez recebida, é autônoma, fechada,
independente. Muitas vezes dizemos erroneamente: “A vida é minha; faço como eu
quero!” A vida será, sempre e em todas as suas etapas, um dom de Deus, um presente
gratuito, e nós seremos sempre dependentes Dele. Esta dependência nos
amadurece, nos liberta de nossos estreitos e mesquinhos horizontes, nos livra
da autossuficiência e nos faz compreender “na carne” nossa própria verdade,
recordando-nos que a vida é para ser vivida em diálogo de amor com Aquele que
no-la deu.
O próprio Jesus, de modo particular, e a Escritura,
de modo geral, nos exortam à vigilância e à sobriedade. O jejum e a
abstinência, portanto, são um treino para que sejamos senhores de nós mesmos,
de nossas paixões, desejos e vontades. Assim, seremos realmente livres para
Cristo, sendo livres para realizar aquilo que é reto e desejável aos olhos de
Deus! O próprio Jesus afirmou que quem comete pecado é escravo do pecado! Não
adianta: sem o exercício da abstinência, jamais seremos fortes. Não basta
malhar o corpo; é preciso malhar o coração!
Como ajuda para esse tempo de penitência, a Igreja
nos recomenda a pratica do jejum. Isso nos torna donos de nós mesmos pelo
domínio da força de vontade. Quando jejuamos, vencemos a vontade de comer,
muitas vezes por gula, e nosso organismo agradece e se desintoxica.
Pensadores, estudiosos, médicos sugerem que o jejum
“lava” o organismo. Jesus jejuou porque o jejum o tornou mais forte e mais
próximo do Pai.
O Jejum é outra experiência que faz parte da
humanidade, pois, praticado desde toda a Antiguidade pelo povo eleito como
sinal de arrependimento, foi praticado por Nosso Senhor Jesus Cristo e por
todos os santos, recomendado pela Santa Igreja como instrumento de santificação
da alma, de controle do corpo e equilíbrio emocional.
Devemos jejuar especialmente na Quarta-feira de
Cinzas, abertura da Quaresma. Na Sexta-feira Santa, dia da morte de Nosso
Senhor. No entanto, todos os católicos devem ter a mortificação e o jejum
presentes em suas vidas ao longo do ano, principalmente durante o Advento, a
Quaresma, tendo sempre o espírito mortificado, fugindo do excesso de conforto e
prazeres e, na medida do possível, oferecendo alguns sacrifícios a Deus, seja
no comer, no beber, nas diversões (televisão, principalmente), nos desconfortos
que a vida oferece (calor, trabalho etc.), sabendo suportar os outros, tendo
paciência em tudo.
Como o jejum e a abstinência fazem parte dos
mandamentos da Igreja, devemos nos empenhar para praticá-los por amor de Deus.
Caso haja alguma negligência ou fraqueza da nossa vontade que nos leve a
quebrar o santo jejum ou a abstinência, devemos nos arrepender por não termos
obedecido ao que nos ordena nossa Santa Madre Igreja, confessando-nos,
penitenciando-nos.
Aproveitemos deste tempo favorável e mergulhemos em
uma caminhada de conversão, com atitudes concretas não para ser vistos e
elogiados pelos homens, mas procurando estar diante de Deus com nossos corações
voltados para Ele. Deixai-vos reconciliar com Deus! E, consequentemente,
procuremos dar o passo com uma boa celebração penitencial, uma boa confissão
neste tempo quaresmal.
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ)
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