Nada
justifica o massacre na redação do jornal Charlie Hebdo, mas algumas
generalizações e relativizações na cabeça da sociedade são tão perigosas quanto
kalashnikovs na mão de fundamentalistas.
O caso Charlie Hebdo levantou grandes discussões. Há politicos,
instituições, governos, jornalistas e comentaristas de facebook de todas as
estirpes falando sobre o assunto em tribunas, periódicos e mesas de bar. Todos
são unanimes em condenar a brutalidade dos ataques, porém as divergências de
opinião são maiores do que as concordâncias.
Enquanto muitos discursos falam sobre o perigo da amplificação do ódio
contra comunidades muçulmanas na França e ao redor do mundo, não faltam aqueles
que de pronto condenem a “selvageria e brutalidade” da religião islâmica e dos
povos árabes, engrossando as fileiras de fundamentalistas nacionalistas que
organizam marchas xenófobas contra a “islamização da europa”, a favor das
intervenções militares criminosas dos estados ricos do Ocidente nos países do
Oriente Médio e África e respaldando o racismo que tornou possível e aceitavel
a longa série de políticas coloniais e práticas exploratórias que sustentaram a
economia e poder da França desde que esta se tornou um Estado-Nação.
Entretanto, não quero falar agora sobre as divergências de opinião, e
sim sobre o consenso, expresso no slogan “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie),
que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan é
atrelado à ideia de que o que ocorreu ontem na França implica um atentado
contra a liberdade de imprensa e valores democráticos ocidentais; implica dizer
que toda imprensa é livre pra publicar irresponsavelmente qualquer conteúdo;
implica dizer que o direito de zombar de uma religião é o mesmo que lutar pelo
estado laico; e implica, principalmente, que o ataque foi simplesmente
resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso diante de uma
critica “ácida e sagaz”, excetuando-se todo o contexto de marginalização e
discriminação da comunidade muçulmana na França. Principalmente, implica
ignorar à que se propõe e quais os efeitos dessas charges no contexto
político-ideológico de um país com níveis alarmantes de racismo.
O argumento mais comum que encontrei nas redes sociais e comentários de
jornais on-line é o de que o Charlie Hebdo fazia charges ofensivas sobre todas
as religiões, e que portanto, se cristãos conseguem ver charges com Jesus e
levar como uma piada, então muçulmanos também deveriam. Esse é um argumento
raso porque coloca no mesmo patamar a situação das comunidades muçulmanas e das
comunidades cristãs na Europa, ao mesmo tempo que reforça a ideia de
superioridade ocidental racionalista. É o mesmo simplismo de quem diz que
chamar um branco de “palmito” tem o mesmo peso de chamar um negro de “macaco”.
Não é só uma piada.
A quem serve a islamofobia?
No dia anterior ao massacre de Charlie Hebdo aconteceram duas marchas na
Alemanha: uma pela expulsão de árabes e muçulmanos do país e outra contra o discurso
xenófobo da direita ultra-nacionalista alemã. Esse tipo de manifestações
populares contra minorias étnicas fica cada dia mais comum em toda a europa, e
a França, sempre avant-garde, é um dos maiores focos de marchas e
movimentos racistas, machistas e xenófobos na Europa.
Na França a “Questão Muçulmana” é uma obsessão prioritária dos grupos de
direita. O jornalista Edwy Planel, autor do livro “Pelos Muçulmanos” (título
dado em alusão ao artigo “Pelos Judeus”, escrito por Emile Zolá em sobre o caso
Dreyfus) aponta os ataques à comunidade muçulmana com sendo a principal
plataforma de discurso eleitoral na França de hoje.
Nicolas
Sarkozy é um exemplo claro da presença do discusro racista na política
francesa. Podemos citar seu discurso na Universidade de Dakar, em julho de
2007, quando disse:
“O drama da África é que o homem africano não entrou totalmente na
história. O camponês africano, que desde milhares de anos vive conforme as
estações, cujo ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o
eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das
mesmas palavras. Nesse imaginário onde tudo recomeça sempre, não há lugar nem
para a aventura humana, nem para a ideia de progresso. Nesse universo onde a
natureza comanda tudo, o homem escapa à inquietude da história que inquieta o
homem moderno. Mas o homem permanece imóvel no meio de uma ordem imutável, onde
tudo parece ser escrito antes. Nunca ele se lança em direção ao futuro. Nunca
não lhe vem à ideia de sair da repetição para se inventar um destino “
Vamos
lembrar que quando fala do “homem africano” (como se todos os povos de Africa
fossem um único grupo homogêneo) Sarkozy alude especialmente à população
muçulmana, uma vez que a França invadiu e colonizou a Argélia e o Marrocos, de
onde vêm a maior parte dos imigrantes islâmicos da França.
Atualmente
vem ganhando muito espaço ideológico o partido de extrema direita Frente
Nacional, cuja principal voz é Marine LePen, famosa pelo discurso islamofóbico
e pelas políticas anti-imigração. Le Pen, forte candidata para as próximas
eleições presidenciais, declarou hoje, no embalo do ataque de ontem, que “a
França está sendo atacada”, e aproveitou para reforçar sua proposta de
instaurar a pena de morte no país.
O professor
Reginaldo Nasser aponta, em artigo publicado ontem, pra o perigo do uso do caso
Charlie para fortalecer as políticas ultra-nacionalistas francesas:
“Há de fato uma situação conturbada na França e que vai piorar a partir
de agora, os preconceitos com os imigrantes podem aumentar e reforçar um
sentimento nacionalista. Le Pen é a representante de um pensamento xenófobo no
país. Mas temos que esperar ainda pra ver quais serão dos desdobramentos quando
se descobrir os culpados”.
Portanto, a mobilização massiva criada em torno do slogan "Je suis
Charlie", se for ausente de uma crítica séria sobre a situação dos
muçulmanos na Europa e as razões da islamofobia na França, tende a ser apenas
combustível para a xenofobia e os partidos ultra-conservadores.
A quem
serve a liberdade de expressão?
Aqueles
que ostentam orgulhosos o slogan “Eu sou Charlie” se dizem advogar pela
liberdade de expressão, porém não questionam o que significa essa liberdade de
expressão nem tampouco quem tem direito a essa liberdade. Ninguém se preocupa
com a censura à liberdade de expressão religiosa islâmica na França.
Em 1989 o
jornal “Le Nouvel Observateur” publicou uma capa contra o uso do hijab,
o véu muçulmano, nas escolas. Isso levou a uma discussão que culminou na lei de
2004 proibindo que meninas islâmicas usando lenços frequentassem as aulas, e
desde 2011 há uma circular do Ministério da Educação recomendando que se impeça
a presença de mães usando hijabs na área em torno dos colégios. Nunca
houve proibição do uso de crucifixos ou camisas com slogans cristãos. A
esquerda francesa (e a maior parte da esquerda ocidental) se mostrou favorável
a esta lei ou, na melhor das hipóteses, silenciou sobre ela, sob o pretexto da
defesa do Estado Laico. Esquecem-se que o laicismo serve para preservar o
direito à liberdade de exercício de pensamento religioso ou à liberdade de não
exercer nenhuma crença religiosa. E esquecem-se de que o islã não é apenas uma
crença religiosa, mas também um referencial de identidade de toda uma
comunidade históricamente oprimida, remetendo à questões religiosas, culturais,
étnicas e políticas.
Proibir a
expressão de sua religião é censura. Proibir a expressão de seus sua identidade
cultural é eugenia. Imaginem, por exemplo, uma lei brasileira proibindo o uso
de turbantes e símbolos da Umbanda e Candomblé em áreas públicas. Seria uma
conquista do estado laico ou (mais) um ataque às crenças afro-brasileiras?
Na
esteira das liberdades de expressão negadas pelo governo francês
intrinsecamente conectadas ao Islã está a abominação legislativa sancionada no
ano passado, quando a França tornou-se o primeiro país do mundo à proibir
manifestações de apoio à Palestina, durante os bombardeios israelenses à Faixa
de Gaza, que assassinaram 1.951 pessoas e feriram 10.193 civis. Qualquer pessoa
que participasse de um protesto contra os crimes de guerra de Israel, praticas
de Terrorismo de Estado respaldadas ideologicamente por políticos e formadores
de opinião entre a população israelense através de fundamentalismo nacionalista
e argumentos de fundamentalismo religioso judaico e islamofobia, seria preso
por um ano ou pagaria multa de 15 mil euros. Se o manifestante cobrisse o rosto
durante o protesto, a pena subia pra três anos de detenção.
Cabe
ressaltar aqui que não sei qual foi o posicionamento do jornal Charlie Hebdo
sobre esse caso em particular, mas certamente a comunidade internacional não se
manifestou tão passionalmente sobre o direito dos franceses à liberdade de
expressar apoio aos palestinos.
Então,
cabe a pergunta:
A quem
faz rir o humor de Charlie Hebdo?
Não
existe piada sem um alvo, e o senso de humor tem poder político por natureza.
Piadas podem ser um meio de constestação ou de sedimentação do senso comum, do
status quo dominante. Quando um humorista faz uma piada racista, está
endossando o racismo de quem ri, criando no riso um lugar seguro pra que os
estereótipos racistas cresçam, legitimando ignorância e raiva disfarçados de
senso de humor. As pessoas formam suas concepções de mundo, de certo e errado,
de verdade e justiça, muito mais através de piadas e slogans simplistas do que
de resoluções da ONU e tratados de sociologia.
Me lembro
que, quando era criança, meu pai comprava livros de piadas em bancas de jornal
e passava o dia atormentando minha mãe com piadas machistas sobre loiras burras
e mulheres caricaturizadas da pior forma possível. Eram sessões ininterruptas
de ofensas, mas que ela ouvia com um sorriso amarelo, uma vez que “era só
piada”. Da mesma forma, ele contava as piadas mais ofensivas possíveis sobre
negros, sempre respaldado pelo fato de que “não era o que ele pensava”, e sim
“só o que estava escrito nos livros de piada”. Foram anos desse tipo de piada
“inocente”, até o dia em que, sem tom de piada ou riso suave, ele me proibiu de
namorar mulheres negras.
É muito
comum que se veja, no Brasil, “humoristas” como Danilo Gentili e Rafinha
Bastos, vindos de uma mesma escola de racismo, machismo e homofobia que geraram
o riso bobo de Costinha e Renato Aragão, defenderem seu direito de ser promover
discurso de ódio como se isso fosse “liberdade de expressão”. E, mais triste
ainda, é muito comum ver a população brasileira defendendo essa “liberdade” de
humilhar, ofender e sedimentar preconceitos contra minorias, sob o rótulo
falsamente liberal (e bastante estúpido) de “politicamente incorreto”. Muitas
vezes eles dizem que estão fazendo humor político, “expondo o racismo” ao fazer
piadas racistas. Esse é um argumento preguiçoso e altamente hipócrita pra
manter seu direito de ser um racista alegre e ainda posar de Voltaire do
facebook.
O humor
das charges do jornal Charlie Hebdo estão na mesma esteira de qualquer senso de
humor racista. Os defensores do “Je suis Charlie” não cansam de dizer que são a
revista é o Pasquim Francês. Dizem que as caricaturas são ácidas e
corajosas, atacando todas as religiões e expondo a homofobia e o
fundamentalismo do islã. Porém, o que as caricaturas de Mohammad fazem é
respaldar o ódio e a ignorância sobre o islã, as comunidades muçulmanas
francesas e os povos árabes.
Na
caricatura em que o profeta Mohammad aparece beijando um cartunista branco não
há contestação nem levantamento de discussão. Não é um canal de diálogo com as
comunidades muçulmanas para contestar as posturas homofóbicas da religião e de
suas muitas multi-culturais comunidades ao redor do mundo. É apenas um desenho
de um homem branco europeu beijando o símbolo máximo de uma religião
pertencente à outro povo. Não é assim que se levanta um debate, não é assim que
se dialoga e não é assim que se contesta. Tudo o que a caricatura faz é zombar
do Islã (cuja crença considera ofensivo representar graficamente seu profeta),
cortar os possiveis canais de discussão com a comunidade que criticam e
aumentar os preconceitos dos franceses islamofóbicos, que assim se sentem
superiores aos seus vizinhos islâmicos. Não é um discurso que contesta a
homofobia das comunidades islâmicas, e sim uma agressão que contesta a
legitimidade de uma comunidade marginalizada e que não dá voz essa comunidade.
Esse tipo de agressão só torna mais dificil que a sociedade em geral ouça à
muçulmanos que buscam combater o discurso conservador dentro da sua religião à
despeito de professarem sua fé.
Em outra
caricatura, um muçulmano segura um Corão enquanto balas atravessam o livro e o
seu corpo. A legenda diz “O Corão é uma merda”. Isso não levanta debate nenhum,
apenas diz “sua religião é uma merda”, o que implica dizer, no caso, “sua
sociedade muçulmana, sua história muçulmana, seus parentes e crenças muçulmanas,
são uma merda”.
As
caricaturas da Hebdo retratam muçulmanos como sendo terroristas, estúpidos e
perigosos. As pessoas se acostumam a pensar nessas imagens quando pensam em
muçulmanos, e isso gera medo, ódio, deboche e xenofobia. Eu, enquanto estudante
de língua árabe, perdi a conta de quantas vezes ouvi tanto piadas imbecis
quanto preocupações sérias de meus amigos que pensavam que eu vivia uma terra
de selvagens e fundamentalistas perigosos.
Esse tipo
de humor raso e infantil não é razão para que se assassinem seus perpretadores.
Eu não defenderia que militantes feministas armadas invadissem o Comedians e
assassinassem Rafinha Bastos. Ainda assim, elas tem todo o direito de se sentir
ultrajadas, agredidas e ofendidas quando ele usa seu poder de discurso para
convencer sua platéia de que mulheres feias devem ser estupradas e ficar
agradecidas pela “caridade”. Mais importante, é preciso ter em mente que, sendo
elas elas o grupo diretamente atingido pelas piadas infelizes dele, é a elas
que a sociedade deve ouvir. Não me cabe o direito de julgar se uma mulher pode
ou não se sentir ofendida com uma piada machista, e não me cabe dizer se um
muçulmano deve se sentir ultrajado por uma piada islamofóbica, porque existe
todo um contexto social por trás dessas piadas que eu não compreendo e do qual
eu não sou a vítima.
Acreditar
que as reações de muçulmanos às caricaturas é simples extremismo é dizer que “é
só uma piada”. Não é. A reação tem a ver com todo o contexto de discriminação
social e econômica, ás humilhações diárias que essa população sofre nos países
europeus, à invisibilidade de sua identidade, ao histórico colonial e também
com as atuais politicas intervencionistas dos países ocidentais no Oriente
Médio e África, que se negam a ouvir as vozes árabes e africanas enquanto
financiam grupos extremistas e assassinam populações civis com drones e
“democracias”.
Um relatório do Observatório Europeu do racismo e Xenofobia aponta que, na França, a chance de alguém de origem árabe/muçulmana conseguir um emprego é cinco vezes menos do que um caucasiano com as mesmas qualificações, possuem menos acesso á educação formal, vivem nas áreas mais sucateadas das cidades e estão sujeitos à todo tipo de descriminação e violência física. O relatório aponta o sentimento de desespero e exclusão social do jovem muçulmano que vê sua possibilidade de progressão social dificultada por racismo e xenofobia.
O
massacre que ocorreu ontem foi um crime horrível de terror e silenciamento,
cometido por alguém que não sabemos ainda quem é (e nada impede que seja uma
operação de false flag) nem com qual intenção. Um crime
horrível e abominável, como foram horríveis e abomináveis os crimes de terror e
silenciamento promovidos pelo Mossad quando assassinou o cartunista Naji Al-Ali,
ou quando Bashar Al-Assad mandou quebrar as mãos do cartunista Ali Ferzat, ou
todos os dias quando a polícia militar de Geraldo Alckmin, aterroriza e
assassina os jovens que imprimem sua critica e revolta com latas de spray nas
paredes da minha cidade. Todos são crimes horríveis de silenciamento, e todos
devem ser condenados, mas cada um tem suas particularidades, razões e contextos
próprios e únicos, e não podemos cair no erro de diluir nossa crítica no
simplismo maniqueísta, ou corremos o risco de que a voz que queremos dar à
democracia seja um megafone para os absurdos da teoria de "choque de
civilizações" de Huntington.
Por tudo
isso, eu Não sou Charlie.
ATUALIZADO:
Uma fonte da Al Qaeda aparentemente reivindicou a autoria pelos ataques agora.
Isso é importante em diversos contextos, mas não muda a análise feita neste
artigo que se centra no poder ideológico das charges. Em breve publicarei outro
artigo sobre o tema abordando a autoria do ataque.
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Descolonizações
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