A vocação é um dom concedido liberalmente por Deus.
E, por vezes, compraz-se o Senhor em chamar alguém aparentemente contrário à
missão para a qual Ele o destina, a fim de manifestar com maior fulgor o poder
de Sua Graça e a gratuidade do Seu chamado. Nesses casos, apesar dos aparentes
paradoxos e à revelia do próprio interessado, cujas aspirações parecem entrar
em choque com os desígnios Divinos, o Senhor vai preparando os caminhos,
servindo-Se até dos próprios obstáculos para fazer cumprir sua Santa Vontade.
Jovem
fariseu de Tarso
Nada parecia indicar que aquele jovenzinho de rosto
vivo e inteligente, de nome Saulo, viesse a transformar-se num intrépido
defensor de Jesus Cristo. Nascido em Tarso, na Cilícia, no seio de uma família
judaica, o pequeno Saulo esteve, desde muito cedo, sujeito a duas fortes
influências que pesariam grandemente na formação de seu caráter.
De um lado, as convicções religiosas que aprendera
de seus pais não tardaram em fazer dele um autêntico fariseu, apegado às
tradições, anelante pela chegada de um Messias vitorioso e libertador do povo
eleito, então submetido ao jugo estrangeiro, e zeloso cumpridor da Lei até em
suas mínimas prescrições.
De outro lado, o ambiente de sua cidade natal
marcou profundamente a personalidade do jovem fariseu. Tarso - metrópole grega,
súdita do Império Romano - tornara-se, por sua localização privilegiada, um dos
centros de comércio mais importantes daquele tempo. Regurgitava de gente,
proveniente das nações mais diversas, cujas línguas e costumes misturavam-se
sob o fator preponderante da cultura helênica. A Providência começava a
preparar o jovem fariseu para sua futura missão de Apóstolo das Gentes.
Discípulo de
Gamaliel
Apenas saído da adolescência, Saulo abandonou sua
pátria para instalar-se na cidade-berço da religião de seus antepassados:
Jerusalém. Ali tornou-se assíduo estudioso das Escrituras, instruído pelo douto
Gamaliel, um dos mais destacados membros do Sinédrio. Também aqui podemos notar
a mão de Deus intervindo em sua vida, pois o conhecimento dos Livros Sagrados,
que adquiriu ao longo desses anos, servir-lhe-ia mais tarde para abrir seus
horizontes a respeito da realidade messiânica de Jesus Cristo.
Entretanto, se Saulo progredia a passos rápidos nas
doutrinas farisaicas, sob o olhar vigilante de Gamaliel, em nada pareceu
assimilar a prudência que caracterizava seu mestre, sempre cauto em seus juízos
e comedido nas apreciações. Pelo contrário, o jovem aluno dava mostras de um
exaltado fanatismo religioso, como ele mesmo confessaria em sua epístola aos
Gálatas: "Avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de
idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais" (Gl 1, 14).
No interior do discípulo de Gamaliel latejava um
coração sincero, à procura da verdade. Buscava-a ardorosamente, desejoso de
alcançar o pleno conhecimento dela. Não sabia que o termo desses seus anseios
encontravase nAquele que, de Si mesmo, dissera: "Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim" (Jo 14, 6).
Sim, Saulo não poderia chegar ao Pai, Suprema
Verdade, sem passar por Jesus, o Mediador entre Deus e os homens. A afirmação
proferida pelo Divino Mestre, momentos antes de Sua Paixão, ele a veria
cumprir-se em sua vida, ainda que contra a sua vontade e apesar de suas
relutâncias. E a ocasião se haveria de apresentar justamente quando as
convicções de Saulo, chocadas ante o Cristianismo que surgia, haviam-se
convertido em ódio profundo contra este.
Encontro de
Saulo com o Cristianismo
Saulo passara alguns anos fora de Jerusalém, que
coincidiram com o período da vida pública de Jesus. Quando voltou, verificou
uma grande mudança. A Cidade Santa não era a mesma que ele conhecera em seus
tempos de estudante: após a tragédia da Paixão, pesava sobre a consciência do
povo e, sobretudo, das autoridades a figura ensangüentada da Vítima do Gólgota,
que eles em vão procuravam lançar no esquecimento. E mais: os discípulos
daquele Homem não temiam pregar sua doutrina no próprio Templo, proclamando que
esse Jesus a quem haviam matado ressuscitara dos mortos (cf. At 3, 11ss.).
Tais acontecimentos não podiam deixar indiferente
um fariseu convicto como Saulo. Não compreendia que aqueles simples galileus se
levantassem impunemente contra a religião de seus antepassados, arrastando
atrás de si tamanha multidão de seguidores. Sua irritação chegou ao auge
quando, estando na sinagoga chamada dos Libertos, onde semanalmente se reuniam
judeus de todas as comunidades da Diáspora, deparou- se com um jovem chamado
Estêvão, que anunciava denodadamente as glórias do Crucificado.
Momentos mais tarde, tendo sido apresentado Estêvão
ao tribunal do Grande Conselho, Saulo escutou atentamente o longo discurso no
qual este demonstrou, por meio de exemplos históricos e de profecias, ser Jesus
o Messias esperado. O jovem fariseu sentia-se incomodado: as palavras de
Estêvão eram tão inspiradas e convincentes, que não se lhe podia resistir (Cf.
At 6, 10); de outro lado, a imagem desse Jesus Nazareno, que ele não conhecera,
parecia perseguilo, e constantemente via-se obrigado a ouvir falar a respeito,
de tal modo os seus adeptos se espalhavam por Jerusalém. Duro lhe era
recalcitrar contra o aguilhão (cf. At 26, 14). E, entretanto, Saulo
recalcitrava!
Indignado diante da coragem de Estêvão, aprovou
entusiasticamente sua morte (cf. At 8, 1) e considerou como uma honra a missão
de custodiar os mantos dos apedrejadores, uma vez que sua idade não lhe
permitia levantar a mão contra o condenado.
Surge o
perseguidor dos cristãos
A partir daquele dia, o exaltado discípulo de
Gamaliel não pôs mais freio à sua fúria. Acreditando "que devia fazer a
maior oposição ao nome de Jesus de Nazaré" (At 26, 9), entrava nas casas
dos fiéis e arrancava delas homens e mulheres para entregálos à prisão (cf. At
8, 3); chegava a maltratá-los para obrigá-los a blasfemar (cf. At 26, 11). Não
contente com devastar apenas a Igreja de Jerusalém, foi apresentar-se ao
príncipe dos sacerdotes, pedindo-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o
fim de prender, nessa cidade, todos os que se proclamassem seguidores da nova
doutrina (cf. At 9, 2).
Mas, esse Jesus a quem ele teimava em perseguir (At
9, 5), viria a atravessar- Se de novo em seu caminho, desta vez de modo
definitivo e eficaz.
No caminho
de Damasco
Podemos imaginar a ânsia do jovem Saulo ao
aproximar-se de Damasco, antegozando a hora de saciar sua cólera no cumprimento
da missão que se propunha. Mas eis que, subitamente, uma luz fulgurante vinda
do Céu envolveu-o e a seus companheiros, derrubando-o do cavalo. Ali, caído por
terra e cegado pelo resplendor dos raios divinos, o orgulhoso fariseu não pôde
mais resistir ao poder de Cristo e declarou-se vencido: "Senhor, que
queres que eu faça?" (At 9, 6).
De perseguidor que era, poucos instantes antes,
passava a servo fiel, pronto para obedecer aos mandatos do Divino Perseguido.
Quanta glória para o Crucificado! Por um simples toque de Sua graça,
transformara em Seu Apóstolo um dos mais ferventes discípulos daqueles que
haviam sido seus principais contendores, durante sua vida pública.
Ajudado por seus companheiros, Saulo ergueu-se do
chão. Entretanto, mais do que levantar-se do solo, surgiu em sua alma "o
homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade"
(Ef 4, 24). O blasfemador de outrora permaneceria para sempre prostrado num
amoroso reconhecimento de sua derrota: "Jesus Cristo veio a este mundo
para salvar os pecadores, dos quais sou eu o primeiro. Se encontrei
misericórdia, foi para que em mim primeiro Jesus Cristo manifestasse toda a sua
magnanimidade e eu servisse de exemplo para todos os que, a seguir, nEle
crerem, para a vida eterna" (I Tm 1, 15-16).
Saulo
converte-se em Paulo
Com a mesma radicalidade com que outrora se apegara
ao judaísmo, Saulo abraçava agora a Igreja de Cristo. A graça respeitara a
natureza, conservando as características próprias de sua personalidade que
viriam mais tarde a contribuir na formação da escola paulina de vida
espiritual. A partir desse momento, o Saulo convertido, o novo Paulo, só se
moveria por um único ideal, que tomava todas as fímbrias de sua alma e dava
verdadeiro sentido à sua existência: "Quanto a mim, não pretendo, jamais,
gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo
está crucificado para mim, e eu para o mundo" (Gl 6, 14).
Doravante essa Cruz - na qual Paulo não apenas
considerava os sofrimentos do Salvador, mas via, sobretudo, os esplendores da
Ressurreição - seria para ele o rumo de sua vida, a luz dos seus passos, a
fortaleza de sua virtude, o seu único motivo de glória. Esse amor, que num
instante operara a sua transformação, o impelia agora a falar, a pregar, a
percorrer os confins do mundo a fim de conquistar almas para Cristo,
arrancando-lhe, do fundo do coração, este gemido: "Ai de mim se eu não
evangelizar!" (I Cor 9, 16).
Por esse amor estava disposto a enfrentar todas as
tribulações, a suportar os piores tormentos, fossem de ordem natural, como
também os de ordem moral: "Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes
recebi dos judeus os quarenta açoites, menos um. Três vezes fui flagelado com
varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no
abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores,
perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na
cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos!
Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, freqüentes jejuns,
frio e nudez! Além de outras coisas, a minha preocupação cotidiana, a solicitude
por todas as igrejas!" (II Cor 11, 23-28).
Ele havia se proposto, antes de tudo, à
glorificação de Jesus Cristo e da Sua Igreja, e isto constituía para ele o suco
essencial, o norte de sua vida. A este respeito comenta São João Crisóstomo:
"Cada dia ele subia mais alto e se tornava mais ardente, cada dia lutava
com energia sempre nova contra os perigos que o ameaçavam. [...] Realmente, no
meio das insídias dos inimigos, conquistava contínuas vitórias, triunfando de
todos os seus assaltos. E em toda parte, flagelado, coberto de injúrias e
maldições, como se desfilasse num cortejo triunfal, erguendo numerosos troféus,
gloriava-se e dava graças a Deus, dizendo: ‘Graças sejam dadas a Deus que nos
fez sempre triunfar' (II Cor 2, 14)."
Apóstolo das
Gentes
Assim, pouco a pouco, por meio de suas viagens
apostólicas e das numerosas cartas através das quais sustentava na Fé seus
filhos espirituais, Paulo ia assentando os fundamentos da Esposa Mística de
Cristo. Nem mesmo internamente havia de lhe faltar adversários: por vezes,
entre os próprios cristãos, surgiam conceitos errôneos, como o de querer
obrigar os pagãos convertidos a praticar os costumes da Lei Mosaica. A esse
respeito Paulo levou sua ousadia até o ponto de discutir com o próprio Apóstolo
Pedro, "resistindo-lhe francamente, porque era censurável" (Gl 2,
11).
Pedro aceitou com humildade o ponto de vista de
Paulo e apressou-se em colocá-lo em prática. Mas os cristãos que haviam
espalhado suas idéias pelas igrejas da Galácia não o imitaram, acrescentando
ainda que a justificação provinha estritamente do cumprimento da Lei. Nada
poderia ser tão nocivo para a Igreja nascente do que tais enganos, e Paulo logo
o percebeu. Decidiu deixar por escrito toda a doutrina sobre esse ponto, e o
fez com tanta segurança e clareza que deduz-se têla recebido dos lábios do
próprio Jesus.
Assim, a epístola dirigida aos Gálatas é um escrito
polêmico, sem receios de apresentar a verdade tal como ela é: "Ó
insensatos gálatas! Quem vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi apresentada a
imagem de Jesus Cristo crucificado? [...] Todos os que se apóiam nas práticas
legais estão sob um regime de maldição" (Gl 3, 1.10). E pouco antes,
afirmava: "Nós cremos em Jesus Cristo, e tiramos assim a nossa
justificação da fé em Cristo, e não pela prática da lei" (Gl 2, 16).
São Paulo e
os gregos
Se Paulo teve de enfrentar oposições dentro de seu
próprio povo, viuse também contestado pelos gregos, que apresentavam objeções
de teor completamente diferente, mas não menos perigosas. A Grécia, principal
centro da cultura naqueles tempos, orgulhava-se da fama de seus pensadores e de
ser o berço da filosofia. Ora, a palavra e a pregação trazidas por Paulo,
"longe estavam da eloqüência persuasiva da sabedoria" (I Cor 2, 4),
como ele mesmo afirmava.
Assim, não raras vezes tornava-se ele alvo do
desprezo ou objeto de vergonha para os convertidos. Ele pouco se importava com
as ofensas feitas à sua pessoa, mas receava que seus discípulos fizessem eco a
idéias tão vãs ou viessem a sucumbir, por medo das humilhações. Por isso,
escrevia ele aos fiéis de Corinto, cidade onde principalmente essas falsas
doutrinas haviam encontrado aceitação: "A linguagem da Cruz é loucura para
os que se perdem, mas para os que foram salvos, para nós, é uma força divina"
(I Cor 1, 18).
Não era esse, porém, o pior dos obstáculos
encontrados por Paulo na Grécia. Afundados na devassidão e na desordem moral,
os gregos haviam elaborado, ao longo dos tempos, uma justificativa para os seus
maus costumes, negando a ressurreição dos mortos. Alguns mesmo, como Epicuro de
Samos (†270 a.C.), chegaram a afirmar que a alma humana é material e mortal.
No próprio Evangelho percebemos lampejos dessa
candente temática quando os saduceus - que, por influência helênica, não
acreditavam na ressurreição - se aproximaram de Jesus para pô-lo a prova,
mediante uma pergunta capciosa (cf. Lc 20, 27-39). A discussão, como vemos,
vinha de longa data e se erguia como principal empecilho para o desenvolvimento
do apostolado paulino.
Talvez Paulo, em seus tempos de fervor fariseu, já
tivera de enfrentar os mesmos saduceus a esse propósito. gora, porém, como
cristão, possuía o argumento da Ressurreição de Cristo e contava com o poderoso
auxílio da graça.
Grande
Apóstolo da Ressurreição
As dúvidas expostas pelos gregos, quando não a
oposição aberta, servirlhe- iam de estímulo para aprofundarse mais na doutrina
da ressurreição e deixá-la explicitada para os séculos futuros. Assim escreveu
ele aos coríntios: "Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os
mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição? Se não há
ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é
vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé. [...] Se é só para esta vida que
temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais
dignos de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os mortos como primícias
dos que morreram!" (I Cor 15, 12-14; 19-20).
Custoso era, para aqueles gregos de vida
desregrada, ter de assimilar esses princípios. Aceitando a ressurreição da
carne, ver-se-iam forçosamente convidados a uma mudança de costumes e a
abraçarem um modo de pensar e de comportar-se condizente com essa esperança.
Mas até mesmo suas relutâncias contribuiriam para o bem, como afirma o próprio
Paulo: "Oportet et haereses inter vos esse" (I Cor 11, 19) - é
necessário que haja partidos, ou heresias, entre vós. Impelido pelas
circunstâncias, Paulo se transforma no grande Apóstolo da Ressurreição.
Cordeiro e
leão ao mesmo tempo
Nem tudo, porém, eram combates para o incansável
Paulo. Se face ao erro e à falta de fé ele mostrava todo o seu ardor combativo
e sua intransigência, em relação aos bons deixava entrever um fundo de alma
extremamente afetuoso e compassivo, ordenado segundo a caridade de Cristo.
Nesta admirável conjugação de virtudes, na aparência opostas, Paulo
assemelhava-se ao Divino Mestre, sempre disposto a perdoar ou pronto a
repreender, a ser Cordeiro e Leão ao mesmo tempo.
Em sua carta aos fiéis de Filipos, que se
inquietavam por seus sofrimentos e suas necessidades, assim escreve: "Deus
me é testemunha da ternura que vos consagro a todos, pelo entranhado amor de
Jesus Cristo!" (Fil 1, 8). E ainda, aos mesmos gálatas, que antes
invectivara a respeito de seus desvios, escrevia mais adiante: "Filhinhos
meus, por quem de novo sinto dores de parto, até que Cristo seja formado em
vós, quem me dera estar agora convosco" (Gl 4, 19).
São Paulo,
segundo Bossuet
Difícil é exaltar o Apóstolo das Gentes em espaço
tão exíguo. A pluralidade estonteante de seus feitos, o poder de sua voz e o
alcance de sua ação apostólica, cujos frutos até hoje alimentam a Igreja,
deixam em embaraço qualquer escritor. Por isso recorremos à incomparável
eloqüência de Bossuet, que assim descreveu o ímpeto da pregação do Apóstolo:
"Este homem, ignorante na arte do bem-falar,
de locução rude e de acento estrangeiro, chegará à esmerada Grécia, mãe de
filósofos e oradores, e, apesar da resistência mundana, fundará mais igrejas do
que Platão teve discípulos. Pregará a Jesus em Atenas, e o mais sábio dos
oradores passará do Areópago para a escola deste bárbaro. Continuará mais
adiante em suas conquistas, e abaterá aos pés do Senhor a majestade das águias
romanas na pessoa de um prócônsul, e fará tremer em seus tribunais os juízes
diante dos quais fora citado. Roma ouvirá sua voz, e um dia aquela velha mestra
sentir-se-á mais honrada com uma só carta do estilo bárbaro de São Paulo,
dirigida a seus cidadãos, do que por todas as famosas arengas que outro dia escutara
de Cícero."
A prisão em
Jerusalém
Sim, Roma, haveria de ouvir sua pregação e suas
ruas calçadas de grandes pedras seriam pisadas pelos pés do Apóstolo. Esses
pés, entretanto, arrastariam pesadas correntes que lhe tolheriam a liberdade
dos movimentos. Acusado pelo ódio de seus concidadãos, por causa de sua
fidelidade a Cristo, Paulo fora entregue à justiça romana. Se seu corpo
suportava as cadeias e os grilhões, sua alma sentia pesar sobre si o suave jugo
de Cristo. Prisioneiro do Espírito (cf. At 20, 22), Paulo recebera, à noite,
esta revelação: "Coragem! Deste testemunho de Mim em Jerusalém, assim
importa também que o dês em Roma" (At 23, 11).
Obediente à inspiração recebida, Paulo exclamará no
tribunal do governador Festo: "Estou perante o tribunal de César. É lá que
devo ser julgado. [...] Apelo para César!" (At 25, 10-11). Querendo
desfazer-se de caso tão complicado, que envolvia assuntos da religião judaica,
Festo apressou- se em satisfazer o desejo do preso, mandando-o para Roma,
algemado e sob a guarda do centurião Júlio.
O primeiro
período de pregação em Roma
Durante a viagem, Paulo não perdia a oportunidade
de anunciar o Evangelho em todos os lugares por onde passava. Após várias
dificuldades ao longo da travessia e enfrentar um naufrágio, fez escala em
Siracusa, na Sicília, e dali foi conduzido a Reggio (cf. At 28, 12-13).
Uma vez chegado à capital do Império e instalado em
prisão domiciliar, Paulo realizava um anseio que havia tempos acalentava no
coração, como ele mesmo o expressara aos cristãos de Roma: "Daí o ardente
desejo que eu sinto de vos anunciar o Evangelho também a vós, que habitais em
Roma" (Rm 1, 15). Dois anos haveria de durar seu doloroso cativeiro, mas
ele, como afirma São João Crisóstomo, "considerava como brinquedo de
criança os mil suplícios, os tormentos e a própria morte, desde que pudesse
sofrer alguma coisa por Cristo". Aproveitou o tempo para pregar o Reino de
Deus (cf. At 28, 31), escrever numerosas cartas às comunidades da Grécia e da
Ásia, as chamadas Epístolas do cativeiro.
Mas a Providência pedia de seu Apóstolo ainda mais
alguns anos de abnegação e fadigas, a ele que suspirava pela morte,
considerando-a um lucro para ganhar a Cristo (cf. Fl 1, 21).
Novas viagens e retorno à capital do Império
Libertado por um decreto jurídico, Paulo ainda
visitaria Creta, Espanha e novamente as conhecidas igrejas da Ásia Menor, pelas
quais tanto se dedicara. Afinal voltaria a Roma para onde se sentia atraído,
talvez por um secreto pressentimento da proximidade da "coroa da justiça"
(II Tm 4, 8) que ali o aguardava.
Sobre o trono dos césares sentavase então o
terrível Nero, cuja crueldade, aliada a um orgulho patológico, já fizera sua
fama. Era conhecido o ódio que votava aos cristãos, e Paulo não passou
despercebido à perspicácia dos espiões do tirano.
Acusado como chefe da seita, foi preso pela polícia
imperial e lançado no Cárcere Mamertino, onde, segundo uma antiga tradição, já
se encontrava Pedro. Nesse escuro subterrâneo, de estreitas dimensões e teto
baixo, o Pontífice da Igreja de Cristo e o Apóstolo das Gentes estiveram
acorrentados a uma mesma coluna. Assim, unidos numa mesma Fé e esperança,
estavam ambos amarrados pelas cadeias do amor ao Rochedo, que é Cristo (cf. I
Cor 10, 4).
O martírio
de São Paulo
Chegou por fim o dia em que Paulo deveria "ser
imolado" (II Tm 4, 6). Para ele a morte pouco significava, pois já se
achava morto para o pecado e vivo para Deus (cf. Rm 6, 11). Uma entranhada e
exclusiva união o ligavam a seu Senhor. Não era ele mesmo que vivia, mas sim
Cristo quem nele habitava (cf. Gl 2, 20) e operava.
Condenado à morte, Paulo, por ser cidadão romano,
não podia, como Pedro, sofrer a pena ignominiosa da crucifixão, mas sim a da
decapitação, e esta devia dar-se fora dos muros da cidade. Conduzido por um
grupo de soldados, o Apóstolo arrastou seus pesados grilhões ao longo da Via
Ostiense e, depois, pela Via Laurentina, até alcançar um distante vale,
conhecido pelo nome de Aquæ Salviæ.
Ali, entre a vegetação daquela região pantanosa, o
sublime imitador de Jesus Cristo selava seu testemunho com o próprio sangue.
Sua cabeça, ao cair no solo sob o golpe fatal da espada, saltou três vezes,
fazendo brotar em cada um dos pontos uma fonte de água borbulhante. Este fato,
se não comprovado pela História, baseia- se numa piedosa tradição confirmada
pelo nome de Tre Fontane, que ostenta o mosteiro trapista construído naquele
local.
"Combati
o bom combate"
Paulo morrera, mas sua monumental obra apostólica,
fundamentada na caridade que consumira sua vida, continuava viva e produziria
ao longo dos tempos abundantes frutos para a Igreja. Até o último alento, sua
vida não fora senão uma grande luta. Luta de entusiasmo e de entrega, de
desprendimento e de heroísmo; luta para levar o Evangelho a todas as gentes,
confiando sempre na benevolência de Cristo.
Os piores vagalhões da vida não puderam atingir o
seu tabernáculo interior. Sua firmeza, semelhante à imobilidade de um rochedo
batido pelas ondas do mar, mantinhase inalterável em meio às maiores angústias
e agonias, certo de que nem a vida nem a morte o poderiam separar do amor de
Cristo (cf. Rm 8, 38-39).
E uma vez concluído o combate, percorrida toda a
sua carreira e chegado ao termo de sua peregrinação terrena (cf. II Tm 4, 7), o
Apóstolo apareceu ante o olhar admirado da humanidade, em toda a sua estatura
de gigante da Fé, transmitindo para os séculos futuros esta mensagem: "Por
ora subsistem a fé, a esperança e a caridade - as três. Porém, a maior delas é
a caridade. A caridade jamais acabará!" (I Cor 13, 13.8).
Estando preso em Roma, o incansável Apóstolo não
deixou de pregar, e obteve a conversão de incontáveis almas. Posto em liberdade
no início do ano 64, dirigiu-se à Espanha e à Ásia. Retornando a Roma, foi
preso novamente, desta vez com São Pedro.
Ficaram eles na prisão mais antiga de Roma, o
Cárcere Mamertino, local impregnado de bênçãos, que comove a quantos por lá
passam. Com efeito, como não se impressionar ao contemplar, logo nos primeiros
degraus da estreita escada que leva ao calabouço, a marca do rosto do Príncipe
dos Apóstolos, milagrosamente impressa na parede de pedra? E que emoção ao ver
no canto da cela a fonte que brotou do solo, possibilitando aos Apóstolos
batizarem os próprios carcereiros, convertidos pelo seu exemplo e pregação!
No final de sua heróica vida, pôde o Apóstolo das
Gentes cantar este hino de triunfo do varão que sente a consciência limpa na
hora do encontro com o Supremo Juiz: "Combati o bom combate, terminei a
minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o
Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos
aqueles que aguardam com amor a sua aparição" (11).
Grandiosa foi sua vida, tal será também sua morte.
Sendo cidadão romano, São Paulo não podia ser crucificado. Foi, assim,
decapitado pela espada, no ano 67. Conta-nos a tradição que sua cabeça, rolando
ao solo, saltou três vezes e fez brotar três fontes que podem ser vistas ainda
hoje na Igreja de San Paolo alle Tre Fontane, na via d'Ostia, em Roma.
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Revista Arautos do Evangelho, Jul/2008, n. 79, p. 26 à 33
Disponível em: Arautos do Evangelho
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