Põe-se aqui uma grave questão: pode haver milagre
fora da Igreja Católica? Nossa resposta é que se pode, em verdade,
sustentar a possibilidade e até a existência de verdadeiros milagres fora da
religião católica. Isso não pode dar-se por uma lei ordinária, mas somente por
exceção e em casos isolados, e jamais fora do fim que distingue a verdadeira
religião de Jesus Cristo. Por isso dizemos que o milagre pode dar-se fora do
corpo desta religião, mas não fora de sua alma. Como fato sistemático, que
constitui, por assim dizer, um sistema, um todo harmonioso governado por
princípios invariáveis e por uma lei fixa, o milagre existe somente na religião
que se intitula universal ou católica, porque fundada pela Causa Primeira que
reuniu tudo, e em favor da qual foram operados os milagres mesmos da antiga
lei.
Em verdade, pode admitir-se que, de maneira excepcional, e em casos isolados, o milagre se dê fora do corpo da religião católica, sendo livre o Espírito Santo para escolher seus instrumentos por onde quer que queira. Isso não deve constituir nenhuma dificuldade, sobretudo se o taumaturgo é um homem de vida santa e não busca outra coisa em suas obras que a honra de Deus.
Será bom, a este respeito, lembrar aqui o que lemos em São Marcos. Tendo dito a Jesus o Apóstolo João: 'Mestre, vimos um homem, que não vai conosco, expulsar os demônios em vosso nome, e lho impedimos', Nosso Senhor falou nestes termos: 'Não o impeçais, pois ninguém pode fazer milagre em meu nome e logo depois falar mal de mim. Quem não é contra vós é por vós'. Isto equivale a dizer que, se algum milagre se cumpre por um homem fora do corpo da Igreja de Jesus Cristo, tal fato é necessariamente ordenado à manifestação da verdade pregada pelo Salvador, e de modo algum em favor do erro.
É neste sentido que se devem explicar os milagres atribuídos, em tempos muito próximos dos nossos, a um padre ortodoxo grego de grande piedade, chamado Ivã ou João Serguief, da principal igreja de Cronstadt. A fama de santidade deste padre era tal que, no mês de outubro de 1894, o imperador Alexandre III, morrendo, o chamou na esperança de obter por sua intercessão um alívio para seus sofrimentos.
Tais milagres, supondo-os autênticos, seriam fatos isolados, cumpridos aparentemente fora da Igreja Católica, mas lhe pertenceriam de direito, porque não tinham por objeto a confirmação de uma falsa doutrina, mas antes a recompensa de uma santidade em harmonia com os princípios proclamados precisamente pela Igreja Católica. Tais milagres teriam tido pois por fim fornecer novas provas da existência da ordem sobrenatural.
Santo Agostinho expõe luminosamente esta verdade quando, comentando
precisamente o fato contado por São Marcos na passagem há pouco citada, explica
que as palavras pronunciadas então por Nosso Senhor: 'Quem não é contra vós é
por vós', não contradizem as referidas em São Mateus: 'Quem não está comigo é
contra mim'. 'Nesse caso' (o daquele que expulsara o demônio), diz o santo
Doutor de Hipona, 'ele não era contra os discípulos, mas, ao contrário, era por
eles, enquanto operava curas pelo nome de Cristo... Ele devia ser confirmado na
veneração de tal nome e, portanto, não era contra Igreja, mas pela Igreja.'
Lembremos ainda, aqui, o episódio tão interessante contado no livro dos
Números. Dois indivíduos, Eldad e Medad, embora não tivessem ido com os outros
ao tabernáculo, profetizaram todavia no campo na ausência e sem o conhecimento
de Moisés. O chefe do povo de Deus, tendo-o sabido, quis que eles fossem deixados
livres para profetizar.
Cardeal
Lépicier
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Spem in Alium
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