Um exame que foi pensado como mero indicador de qualidade acadêmica transformou-se num forte instrumento de controle, inclusive ideológico, de acesso ao ensino superior. E já está sendo usado para consolidar a ideologia de gênero
Nunca houve, na história do Brasil, um instrumento
potencialmente tão completo, em termos de dominação ideológica do país,
como o ENEM. De fato, ele é, hoje, basicamente a única porta de
acesso a todo o ensino superior e a toda a estrutura de pós-graduação no país –
vale dizer, quem não estiver preparado para demonstrar não somente qualidade
acadêmica, mas também afinação com os pressupostos ideológicos que
regem os elaboradores e corretores do exame está condenado a não obter vaga nas
universidades, ou ao menos privar-se das universidades de maior qualidade e dos
cursos mais procurados.
Não se trata de discutir se o ENEM é ou não um
instrumento pedagógico tecnicamente bom. Possivelmente ele é, e isto
não diz nada em seu favor: são exatamente os instrumentos bons os que são mais
aptos de produzir danos enormes quando mal utilizados. Uma faca extremamente
afiada é um instrumento soberbo para um bom churrasco, mas é também uma arma
letal nas mãos de um assassino. Há uma confusão básica – também no campo da
educação – entre ética e técnica, como se o avanço técnico da
ciência pudesse influir diretamente, ou mesmo determinar, as fronteiras da
ética.
Neste ponto, há que se frisar: nenhum governo
autoritário do Brasil jamais dispôs de um instrumento tão completo, abrangente
e eficaz, no plano do controle ideológico, como é o ENEM. Para o bem ou para o
mal. Trata-se, como disse, de condicionar o acesso a todo o ensino
superior à porta única de entrada que é este exame. E que, é claro, submete-se
(potencialmente ao menos, senão em ato) a um grande controle
ideológico sob o ângulo de certos consensos acadêmicos e midiáticos que
estão bem estabelecidos, hoje, no nosso país e no mundo.
Dou um exemplo: há uma grande discussão, hoje,
sobre a verdadeira noção de “identidade sexual”. Tradicionalmente, sempre se entendeu
que a “identidade sexual” do ser humano é binária: somos homens e
mulheres, e as exceções clínicas, raríssimas, somente confirmavam a regra. Há,
é claro, (e tradicionalmente se entendia assim) o campo
das tendências, inclinações, desejos e opções sexuais,
mas estes não faziam parte da própria identidade sexual,
da substância da pessoa humana, senão do campo
dos condicionamentos e das escolhas,
das opções e vivências culturais e pessoais, na riqueza da
sexualidade humana. Compreendia-se que havia homens e mulheres, e que havia
diversas maneiras e modos de se viver na prática a sexualidade, sem que tais
maneiras e modos passassem a integrar a própria noção de identidade sexual. É
assim que a Declaração Universal de Direitos Humanos, já nos seus “consideranda”,
fala em “dignidade e valor do ser humano e na igualdade de direitos entre
homens e mulheres”, ou em vedação de “distinção de sexo”, já no seu artigo 2º.
É assim, também, que no seu art. 16, reconhece-se que
“Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer
restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair
matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao
casamento, sua duração e sua dissolução”. Para a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, portanto, a questão de uma “identidade sexual” diversa
do sexo das pessoas nem sequer se colocava. Éramos, e sempre fomos,
homens e mulheres. Ponto. Todo o resto estava no campo
dos condicionamentos, das escolhas, das tendências e desvios,
alguns publicamente reprimidos, como a pedofilia, alguns
simplesmente tolerados, como a promiscuidade,
outros estimulados, em função do seu interesse para todos, como a formação
de famílias complementares e fecundas. E as coisas foram assim até pelo menos
os anos setenta.
O advento da
ideologia do gênero.
De repente, embalados por estudos pretensamente
científicos e suas interpretações filosóficas ou pseudoéticas, de pensadores
como Wilhelm Reich, Marcuse, Simone de Beauvoir, Foucault, Shulamith Firestone
ou Judith Butler, só para citar alguns, a “identidade sexual” passou a
incorporar em si não somente a condição de homens e mulheres,
mas as próprias tendências, escolhas, condicionamentos ou desvios, fazendo com
que o lado estritamente subjetivo da sexualidade humana prevalecesse sobre a
objetividade da convivência pública, e inserindo no campo da dignidade da
pessoa humana a ser tutelada pelo Estado aquilo que, anteriormente, estava
no âmbito da estrita variabilidade pessoal, com todo o grau de
conforto ou desconforto que as situações concretas determinavam.
Assim, ser, digamos, somente para exemplificar, um
pedófilo, um estuprador, um heterossexual promíscuo, ou mutilar-se física e
hormonalmente com o fito de simular um sexo biológico diverso daquele que
sua pessoa recebeu pelo nascimento, dentre outras tendências sexuais possíveis,
tudo isto transportou-se de onde estava originalmente (do plano das tendências,
dos condicionamentos e das escolhas comportamentais) para o campo da
própria identidade sexual substancial da pessoa humana, a ser
pretensamente tutelada pela legislação que protege a dignidade da
pessoa humana. E sob as penas de criminalizar-se como homofóbico o
pensamento de quem insiste na concepção histórica e consentânea com a própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de que a identidade sexual,
quanto à substância da pessoa humana, diz respeito apenas à condição de
sermos homens e mulheres. Tudo o mais tem, é certo, reflexos
importantes na tutela da pessoa humana, mas não definiria, conforme sempre se
pensou até a instalação hegemônica do pensamento contrário no âmbito de um
certo “consenso acadêmico” e “jurídico”, identidade substancial de ninguém.
Quais as
consequências sociais dessa ideologia?
As consequências práticas estão aí, e tornam
impossível adotar a postura do “viva e deixe viver” que a maior parte dos pais,
educadores, operadores e mesmo pessoas religiosas estão adotando. Não se trata
de dizer: “ora, se você não concorda com isso, viva a sua vida e deixe que os
outros vivam, afinal esta é uma sociedade democrática e plural”. Não é tão
simples assim: definir que tendências e inclinações sexuais definem a própria
identidade sexual para fins de tutela da dignidade da pessoa humana significa
dizer, entre outras coisas, que os banheiros públicos já não terão mais, como
critério de uso, a fisiologia excretora dos usuários, mas a sua “identidade
sexual” definida pela “tendência” ou “inclinação” que ele escolhe ou encontra
em si mesmo. Assim, em vez de usar um banheiro público conforme ao seu aparelho
excretor, ele o usará conforme a sua “identidade sexual”, num grande quiproquó:
o banheiro não será mais espaço de atendimento de necessidades fisiológicas
determinadas pela biologia, mas espaço de afirmação de tendências ou
inclinações sexuais elevadas ao grau de dignidade da pessoa humana. Não se
trata, pois, de construir mais
banheiros, digamos, terceiros ou quartos banheiros, para
aqueles cuja escolha identitária sexual não coincide com a fisiologia
excretora, por nascimento ou por mutilação cirúrgica, mas de compelir a todos,
mesmo aqueles que ainda acreditam no texto original da Declaração dos Direitos
Humanos da ONU, a dividir o banheiro não pelo critério da conformação
excretora, mas da tendência ou inclinação sexual, inclusive e
principalmente quando esta não coincidir com o aparelho excretor. A
proposta, portanto, é de reeducação global impositiva estatalmente,
inclusive por meios criminais, para tornar hegemônico aquilo que certo
consenso acadêmico e jurídico vê como avanço social e civilizatório, tornando
impossível sequer manifestar opinião contrária. Que seria, segundo eles,
afrontosa aos direitos humanos e à dignidade da pessoa, e
portanto, uma opinião que até outro dia fazia parte do próprio texto da
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU passa a ser quase
uma opinião bandida.E banida.
Os reflexos práticos das opções estatais nas
liberdades públicas.
Imaginemos, agora, uma ação judicial coletiva que
vise forçar as escolas confessionais do país inteiro a permitir, ou mesmo a
impor, que suas crianças, meninos ou meninas, dividam o banheiro com pessoas
adultas cuja “inclinação” ou tendência” não coincida com o respectivo aparelho
excretor. Isto simplesmente inviabilizaria, no limite, a própria existência de
espaços confessionais abertos ao público, remetendo a religiosidade humana
exatamente para onde estes mesmos ideólogos sempre propuseram que ela deveria
estar: no âmbito do estritamente privado e fechado. E onde estamos? Basicamente
calados.
Ora, o que se vê, mesmo, digamos, em certos âmbitos
educacionais e confessionais, não é simplesmente uma preparação para conviver –
e formar nossos filhos para conviver – com uma sociedade majoritariamente
adversa. Trata-se de estar muitas vezes cegos para o que parece ser um discurso
de “direitos humanos” e “militância” social, ou mesmo empolgados com tais
perspectivas, promovendo-as até mesmo como deveres para um cristão,
jovem ou idoso. E vemos educadores católicos, padres, bispos e entidades
religiosas promovendo, orgulhosos, encontros, debates e passeatas para promover
a defesa destas posições como se fossem a defesa de “oprimidos e
marginalizados”, numa postura pouco coerente. Mas parece que ainda vivemos uma
época, mesmo em certos âmbitos religiosos institucionais, em que palavras de
ordem valem mais do que a Bíblia e o Catecismo. Não há nada mais importante do
que ter critérios. E é exatamente de critérios que estamos nos tornando
paupérrimos.
Voltemos então para o ENEM. Não é de estranhar que
Simone de Beauvoir tenha sido tema no último exame. Nem quero imaginar o que
ocorreria com os estudantes que ousassem lê-la, na prova, de maneira diversa
dos tais “consensos acadêmicos”. Muito poucos, é certo, conseguiriam, porque já
foram devidamente doutrinados para fazer o exame, e nem sequer sabem que há a
possibilidade de uma leitura diversa daquela que o Exame espera deles. Mas e
quanto aos que pensam diversamente? Dobram-se à ideologia vigente ou
estão fora do mundo do ensino superior de qualidade. É uma arma
poderosa.
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ZENIT
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