Em síntese: O
episódio da multiplicação dos pães (Mt 14, 13-21) tem sido ultimamente
apregoado não como um feito milagroso de Jesus, mas como a simples partilha dos
farnéis existentes na multidão. Tal interpretação não somente não corresponde
aos dizeres do texto, mas não é aceita pelos bons exegetas em geral. Trata-se
de um fato histórico milagroso, que os evangelistas descrevem como sinal do
pão eucarístico e da bonança prometida pelos Profetas para o Reino messiânico.
Na pregação do
Evangelho, ouve-se dizer que a multiplicação dos pães não foi um milagre, mas
partilha do pão existente no farnel dos ouvintes de Jesus. Visto que tal
interpretação tem causado perplexidade, ser-lhe-ão dedicadas as considerações
seguintes.
1.
Milagre ou partilha?
Antes do mais, é
de notar que o episódio foi muito caro aos antigos. Mateus e Marcos o narram
duas vezes; cf. Mt 14,13-21; 15, 29-39 e Mc 6, 30-40; 8, 1-18. São Lucas o
refere uma só vez; cf. Lc 9, 10-17. São João também; cf. Jo 6,1-13. Os exegetas
atualmente julgam que em Mt e Mc há duplicata do relato do fato, embora leves
diferenças existam entre a primeira e a segunda narrativas; trata-se de duas
tradições a referir o mesmo feito de Jesus.
Pergunta-se
agora: que houve realmente no episódio em foco?
A interpretação
tradicional e amplamente majoritária afirma ter havido um milagre: com poucos
pães e peixes Jesus saciou milhares de homens. Recentemente começou-se a dizer
que não houve milagre, mas Jesus ordenou que os seus ouvintes repartissem
entre si as provisões que haviam levado. Tal interpretação carece de fundamento
no texto e o violenta, pois o evangelista faz observar que nada havia para
comer entre a multidão.
“Chegada a
tarde, aproximaram-se dele os seus discípulos, dizendo: “O lugar é deserto e a
hora já está avançada. Despede as multidões para que vão aos povoados comprar
alimento para si”. Mas Jesus lhes disse: “Não é preciso que vão embora.
Dai-lhes vós mesmos de comer”. Ao que os discípulos responderam: “Só temos aqui
cinco pães e dois peixes”.
Jesus então
interveio, multiplicando os pães.
O caráter
milagroso do episódio é mais realçado na segunda narrativa. Com efeito; a
secção de Mt 15, 29-39 segue-se a um milagre de Jesus: a cura da filha da
mulher Cananeia (Mt 15, 21-28) e a uma declaração sobre a atividade
taumatúrgica de Jesus:
“Vieram até
ele numerosas multidões, trazendo coxos, cegos, aleijados, mudos e muitos
outros e os puseram a seus pés e ele os curou, de sorte que as multidões
ficaram espantadas… E renderam glória ao Deus de Israel” (Mt 15, 29-31).
Jesus mesmo diz
logo a seguir:
“Tenho
compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que
comer. Não quero despedi-la em jejum, de modo que possa desfalecer pelo
caminho”.
Na base destas
averiguações, não pode restar dúvida de que se trata de um fato histórico e
milagroso em Mt 14, 21-32 e paralelos.
Vejamos algumas
peculiaridades da narrativa.
2.
Particularidades literárias
O relato da
multiplicação dos pães nos quatro Evangelhos não pode deixar de lembrar ao
leitor certos antecedentes do Antigo Testamento:
Em 2Rs 4, 42-44
lê-se o seguinte: “Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe para o homem de
Deus pão das primícias, vinte pães de cevada e trigo novo em espiga. Eliseu
ordenou: “Oferece a essa gente para que coma”. Mas o servo respondeu: “Como hei
de servir isso para cem pessoas?”. Ele repetiu: “Oferece a essa gente para que
coma, pois assim falou o Senhor: “Comerão e ainda sobrará”. Serviu-lhes, eles
comeram e ainda sobrou segundo a palavra do Senhor”.
Verifica-se que
a estrutura literária é a mesma que em Mt 14, 13-21; são levados a Eliseu
alguns pães; o Profeta ordena a seu servo (discípulo) que sacie cem homens; o
servo aponta a impossibilidade (como os Apóstolos). Eliseu ignora a objeção e,
confiado na Palavra de Deus, manda distribuir o pão. Ficam sobras, como no
relato evangélico.
Em Ex 16, 1-36 e
Nm 11, 4-9 é narrada a entrega do maná ao povo no deserto, entrega à qual Jesus
faz alusão ao prometer o pão eucarístico; cf. Jo 6, 49.
Tais episódios
do Antigo e do Novo Testamento não referem apenas uma refeição humana, mas têm
significado transcendental: querem dizer que Deus acompanha, ontem e hoje, seu
povo peregrino e lhe oferece os subsídios necessários para que supere os
obstáculos da caminhada e chegue certeiramente ao termo almejado, que é a vida
eterna.
O relato
evangélico faz alusões também à Eucaristia, o viático por excelência. Assim
Mt 14, 15: “Ao
entardecer” em grego é a fórmula com que é introduzido o relato da última ceia;
Mt 14, 19:
“tomou os pães”, “levantou os olhos para o céu”, “abençoou”, “partiu”, “deu aos
discípulos” são expressões da última ceia e da posterior celebração
eucarística.
Mt 14, 20: a
grande quantidade de pão assim doada lembra a fartura prometida pelos Profetas
para os tempos messiânicos; cf. Os 14, 8; Is 49, 10; 55, 1…
O recolher os
fragmentos que sobram, é usual na celebração eucarística.
Em suma, a ceia
de viandantes proporcionada pelo Senhor ao seu povo é prenúncio da ceia plena
ou do banquete celeste, símbolo da bem-aventurança definitiva. É neste contexto
que há de ser lida a secção de Mt 14, 13-21 e paralelos; na intenção dos
evangelistas, ela quer significar o Dom supremo de Deus ao homem, que é o
encontro face a face na bem-aventurança celeste.
D. Estevão Bettencourt, osb
Revista “Pergunte e Responderemos”
Revista nº 479, Ano 2002, Pág. 191.
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