No período da Páscoa, os cristãos saúdam com freqüência desejando a paz:
“paz a você!” “A paz esteja contigo!” Foi assim que Jesus Cristo saudava os
apóstolos nos encontros com eles, depois da sua ressurreição: “a paz esteja com
vocês! Não tenham medo!” (cf Lc 24,36; Jo 20,19-26).
Com estas palavras, Jesus Cristo queria serenar o ânimo dos discípulos,
muito assustados com o fato de verem o Mestre novamente, depois de ele ter sido
crucificado e sepultado há vários dias... Estavam apavorados também com o temor
de que algo de pior também pudesse acontecer a eles, pois eram bem conhecidos
como o grupo de seguidores do Nazareno. Jesus devolve-lhes a paz e a alegria, dando-lhes
a certeza de estar novamente com eles.
Sabemos que essa paz durou pouco para os apóstolos, pois bem depressa
desabaram sobre eles e os primeiros cristãos ameaças, prisões, torturas e
mortes violentas. Tudo porque anunciavam o Evangelho de Cristo, partindo da sua
ressurreição dentre os mortos. E assim continuou ao longo dos dois mil anos de
Cristianismo, durante os quais houve poucos momentos de paz e tranquilidade...
Em alguma parte do mundo, sempre houve perseguições, repressão e martírio para
os cristãos. O próprio Jesus havia advertido que a vida de seus seguidores não
seria fácil: “o discípulo não é maior que o mestre: se perseguiram a mim,
perseguirão também a vós” (Jo 15,20).
Atualmente, os cristãos são, de longe, o grupo religioso mais perseguido
ou reprimido no mundo. Só para lembrar alguns fatos mais recentes: no último
dia 2 de abril, alguns guerrilheiros do grupo Al Shebab, provenientes da
Somália, entrou na Universidade de Garissa, no leste do Quênia, e escolheu
especificamente os cristãos, deixando os demais irem embora. Foram mortos ao
menos 147 pessoas, só porque eram cristãs. Em março de 2015, houve o seqüestro
de 150 cristãos no noroeste da Síria; ainda em março, 14 cristãos foram mortos
e mais de 70 ficaram feridos em conseqüência de dois atentados suicidas numa
igreja católica e noutra, evangélica.
Ainda em março passado, um grupo adentrou um convento e, entre outras
violências, estuprou uma freira idosa, de 72 anos de idade no estado de Bengala
Ocidental, na Índia. E são constantes as notícias sobre atentados contra
igrejas cristãs na Nigéria, com numerosas vítimas; no Iraque, os mártires
cristãos são numerosos, por conta do avanço do grupo “Estado Islâmico”. E o
mundo assistiu horrorizado o degolamento de um grupo de cristãos na Líbia,
também em março. No Egito, Sudão, Congo e Nigéria foram muitas as igrejas
cristãs atacadas, com numerosas vítimas. Não é diferente no Paquistão.
No próprio domingo da Páscoa dos cristãos, 5 de abril, duas igrejas foram
atacadas e incendiadas na Síria pelo grupo radical que domina boa parte daquele
país. Mas refresquemos um pouco a memória, para não esquecer os numerosos
mártires da guerra civil espanhola, padres, freiras e leigos, trucidados pelo
único motivo de serem cristãos; nem devem ser esquecidos os inumeráveis
cristãos, que foram vítimas dos regimes totalitários do século 20, os quais
sempre viram na Igreja e nos cristãos fieis a ela um atrapalho para suas
pretensões de poder total. E, só para lembrar, vamos retroceder um século na
história, para encontrar mais de um milhão e meio de cristãos da Armênia,
mártires de repressão político-religiosa, um verdadeiro genocídio, ainda mal
reconhecido.
Não ignoro que também há perseguição, repressão e martírio em relação a
grupos religiosos, não cristãos. Eles merecem meu respeito e solidariedade.
Minha reflexão, no entanto, refere-se à atual repressão sofrida pelos cristãos
em várias partes do mundo. No conceito cristão, martírio não é suicídio, nem
vida perdida em confronto com adversários; menos ainda, vida sacrificada por
motivos ideológicos, em ato de violência contra outras pessoas. Mas é morte
sofrida por causa das convicções religiosas.
Os mártires cristãos, para serem assim reconhecidos pela Igreja, não
devem manifestar ódio ou desejo de vingança contra quem os martiriza mas, a
exemplo de Cristo na cruz, perdoar: “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que
fazem” (Lc 23,34). A Igreja valoriza a fé heróica e a fortaleza dos seus
mártires. Existe até certa convicção formada entre os cristãos de que, quando
não há mártires durante um período, isso poderia significar que as convicções
cristãs ficaram diluídas e perderam vigor, acomodando-se às circunstâncias e ao
ambiente: deixaram de ser “sal da terra e fermento na massa” (cf Mt 5,13).
Se assim é, por que motivo, então, preocupar-se com as perseguições e
martírios que os seguidores de Cristo sofrem? Os cristãos submetidos a
violências, talvez, teriam a possibilidade de fugir, emigrar, mudar de
religião, continuar cristãos deixando-se explorar como escravos; ou então,
mantendo firme a sua fé, de perder a vida. No entanto, isso não pode ser
exigido de ninguém. Atrás dos martírios, há um problema político-ideológico de
violação grave dos direitos humanos, diante do qual, em boa parte, a comunidade
internacional está se mantendo surda, calada e de braços cruzados. Nem mesmo
tenho conhecimento de alguma manifestação de Autoridades brasileiras em relação
a esse drama evidente.
A liberdade de consciência e a liberdade para professar a própria fé, ou
de não ter fé ou religião alguma, deveria ser garantida a todos. Trata-se de um
direito humano fundamental, reconhecido pela ONU. Infelizmente, esta liberdade,
talvez, é vista como secundária e, por isso, ou sacrificada diante de
interesses estratégicos “maiores”... Cálculos perversos levam a violências
sempre maiores. Não haverá paz verdadeira enquanto a liberdade religiosa não
for respeitada e assegurada a todas as pessoas.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
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