A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se
estes dias, como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na
leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos, primeiros
membros seus, companheiros seus: porque não criam estar vivo aquele mesmo por
cuja morte choravam. Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres - e a terra
inteira haveria de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas
ainda não criam. Não acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto
ressuscitando os mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si
mesmos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito seriam graças a
ele.
E foi deste modo que Pedro se mostrou quem era:
quando iminente a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou.
Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já
verem. Grande, pois, foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu
crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles
não criam em seus próprios olhos.
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a
vida nova dos que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e
Ressurreição, que muito devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo
desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte da vida, de onde se
bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha. Por que a Cristo não
convinha a morte.
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte
é o pecado.
Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O
primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a
condição de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo
que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do que dissera
quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então, ainda, a segunda morte,
após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna morte. Sujeito. a essa
condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse
mesmo homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois,
ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo: "Livre entre os
mortos" 1.
Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como
Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por
motivo de culpa, comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da
culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar;
comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo.
Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para
mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua
vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: "Foi entregue por
causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa justificação" 2.
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão
aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser
circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a
pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser
realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da
semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana.
Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que,
ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo
dizer: "Se ressuscitastes com Cristo..." 3 Como ressuscitamos, se
ainda morreremos? Que quer dizer o Apóstolo: "Se ressuscitastes com
Cristo?" Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas
falava aos vivos, aos que ainda não morreram... os quais, contudo,
ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: "Se ressuscitastes com
Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à
direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque
estais mortos!"
É o próprio Apóstolo quem está falando. Ora, ele
diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu... E por que também a digo?
"Acreditei e por causa disto falei" 4.
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos.
Quem, porém, ainda não morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se
vive mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra para que
não morra? Converta-se, para não ser condenado.
"Se ressuscitastes com Cristo", repito as
palavras do Apóstolo, "procurai o que é do alto, onde Cristo está
assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra.
Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo,
que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na glória".
São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem
ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim,
morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto,
não o que sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando
lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem
diz o Salmo: "os inimigos dele lamberão a terra" 5.
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós?
Filhos de Deus.
O filhos dos homens, até quando tereis o coração
pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?
Que mentira buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que
seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por todos os
vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser feliz.
Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz,
isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro
serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o
mais que aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a
terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora,
coisa alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira?
Como, pois, haverás de ser feliz? "O filhos dos homens, até quando sereis
pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso
coração?" 6 Até quando foram os homens pesados de coração? Foram-no antes
da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o
coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo
tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o
que desejais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o
serás. Continuemos ali adiante (no versículo do Salmo): "Até quando sereis
pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?"
"Sabei" - o quê? - "que o Senhor engrandeceu o seu Santo"
7.
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a
sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi
flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no
lenho, transpassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia
ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eis, tende lá os vossos
olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu
Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à
sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não
o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se
encontra o que desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside
ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse,
alguém, sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: "Por que estás
a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na
qual nada encontrarás!"
Que responderias a tal conselheiro? "Procuro
ouro". Ele te diria: "Não nego que exista o que desejas, mas não
existe onde o procuras".
Assim também, quando dizes: "Quero ser
feliz" . Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse
tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da
tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que existe em abundância?
Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na cela de tua miséria.
Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua morada.
Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do
Céu, à mesa dos anjos, onde ele mesmo é o pão. Descendo até cá, e tantos males
recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
"Crede, crede que chegareis aos bens da minha
mesa, pois não recusei os males da vossa".
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim,
da-lo-á. Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez:
ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: "À minha mesa vos convido.
Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não
se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eis para onde vos convido, para a morada
dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para
a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não
quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a minha
morte".
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne
corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com
Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada
senão quando chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com
aquele que por nós morreu.
Santo Agostinho, bispo
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NOTAS:
1 SI 87
2 Rm 4,25
3 Cl 3,1
4 SI 115
5 SI 71,9
6 SI 4,3
7 Ibid
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Fonte: P.L. 38, 1104-1107
Disponível em: GOMES, C. Folch Antologia dos Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas 1979; Ecclesia
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