Quando o Concílio Vaticano I formalmente declarou, em 1870, o dogma da
infalibilidade papal, este foi cuidadosamente circunscrito. De acordo com a
fórmula do Concílio, um edito papal é considerado incapaz de erro somente se:
• for concernente à fé e à moral;
• não contradizer as escrituras ou revelação divinas;
• for destinado a ser realizado por toda a Igreja.
Conforme disse o Papa Bento XVI em julho de 2005: “O papa não é um
oráculo, é [somente] infalível em situações raríssimas”. Bento XVI reforçou
esta ideia quando publicou o seu livro “Jesus de Nazaré”, convidando as pessoas
a discordarem dele.
Entre as pessoas em geral, no entanto, muitas vezes estes limites não se
fazem presentes. Muitas pessoas supõem que os católicos devam aceitar tudo o
que um papa diz como sendo uma verdade evangélica – ou, pelo menos, que é um
grande embaraço se um papa for pego cometendo um equívoco.
Nesse contexto, é de se notar que o Papa Francisco pareça determinado pôr
os pingos nos is ao acolher o que se poderia chamar de o seu próprio “dogma da
falibilidade”. O pontífice parece absolutamente aberto a admitir erros,
confessando ignorância e reconhecendo que pode ter se deixado aberto a
interpretações errôneas.
Cabe a quem observa decidir se tal franqueza é algo charmoso ou
simplesmente confuso. Em qualquer caso, certa dubiedade em suas falas está
tornando uma característica definidora do estilo deste pontífice.
Um caso clássico, quase emblemático, veio durante a coletiva de imprensa
a bordo do avião que trazia o papa de volta a Roma no domingo, após a viagem de
uma semana pela América Latina.
Durante uma sessão de 65 minutos com os repórteres, Francisco abraçou a
sua própria falibilidade por sete vezes, no mínimo:
• Questionado sobre uma disputa de fronteira entre a Bolívia e o Chile,
Francisco disse que não iria comentar porque “eu não quero dizer algo errado” –
uma admissão indireta de que ele é capaz de fazer exatamente isso.
• Sobre uma polêmica no Equador a respeito do que ele quis dizer com a
frase: “povo equatoriano que com tanta dignidade se levantou”, Francisco
respondeu que “uma frase pode ser manipulada” e que “temos de ter muito
cuidado” – um reconhecimento, talvez, de que ele nem sempre tem se apresentado
com prudência.
• Perguntado sobre as tensões entre a Grécia e a zona do euro, Francisco
disse ter uma “grande alergia” para com as questões econômicas e disse da
contabilidade financeira que seu pai praticava na Argentina: “Eu não entendo
muito bem desse assunto”. Para um pontífice que fez da justiça econômica e do
sistema financeiro global uma peça central de sua retórica social, este foi um
reconhecimento um tanto impressionante.
• Também sobre a situação na Grécia, Francisco disse que ouviu no ano
passado sobre um plano das Nações Unidas para permitir que os países declarem
falência, mas acrescentou: “Eu não sei se é verdade”, e, de maneira notável,
pediu aos repórteres que viajavam com ele para dizerem se sabiam do que ele
estava falando. (Francisco poderia estar se referindo a um debate na ONU em
2014 sobre uma lei internacional de falência.)
• Concernente às críticas sobre os seus comentários relativos ao
capitalismo feitos por comentaristas e políticos nos EUA, Francisco disse estar
ciente delas, mas se recusou a reagir porque “eu não tenho o direito de emitir
uma opinião sem ter travado um diálogo antes”.
• Quando o questionaram sobre por que ele fala muito sobre os pobres, mas
relativamente pouco sobre a classe média, Francisco admitiu sem rodeios: “Você
está certo. É um erro meu não pensar nisso”, e “você está me falando sobre algo
que preciso fazer. Preciso ir mais fundo nisso”.
• Perguntado se está preocupado com o fato de que as suas declarações
podem ser exploradas por governos e grupos de lobby, Francisco falou que “toda
palavra” corre o risco de ser retirada do contexto, e acrescentou: “Se eu
cometo um erro, com um pouco de vergonha eu peço perdão e sigo em frente”.
Para que fique claro: dificilmente ele estava se afastando da crítica
pungente que fez na Bolívia daquilo que tachou de um “sistema econômico global”
que impunha “a lógica do lucro a todo o custo” à custa dos pobres.
Pelo contrário, ele soltou mais uma crítica dessas durante a coletiva,
agora sobre o que denominou de uma “nova colonização (...) a colonização do
consumismo”, o que, disse o pontífice, causa “desequilíbrio na personalidade
(...) na economia interna, na justiça social, e mesmo na saúde física e
mental”.
O que ele acrescentou, não obstante, foi uma dose de humildade pessoal ao
reconhecer certa carência de conhecimentos técnicos e a capacidade de errar
quando fala sobre essas questões, tanto no conteúdo de suas opiniões quanto no
jeito como as formula.
Francisco já havia deixado claro ter esta consciência antes. Em novembro
de 2013, por exemplo, ele telefonou para um escritor conservador italiano
chamado Mario Palmaro, que estava hospitalizado naquele momento e que havia
sido um dos autores de um artigo crítico sobre o seu papado. Palmaro disse que
Francisco sabia que o artigo fora escrito “por amor ao papa”, e acrescentou que
“estas são coisas que eu preciso ouvir”.
Em certo sentido, este dogma pessoal da falibilidade se encaixa no estilo
geral de Francisco. Por exemplo, ele se refere a si mesmo como o “Bispo de
Roma” em vez de o “Sumo Pontífice”, e circula em um Kia ou num Ford ao invés da
tradicional limusine. Em outras palavras, trata-se de mais um capítulo da
“desmistificação” em curso do papado.
Podemos ver esta autocrítica ou como um reforço ou como um
enfraquecimento da mensagem do papa.
Em todo caso, os teólogos, os historiadores da Igreja e os católicos em
geral passaram boa parte dos últimos 150 anos reclamando de que o mundo
exterior tem um conceito inflado do que a infalibilidade papal realmente
significa.
No mais, com o Papa Francisco parece que os esforços em restaurar um
sentido sadio da falibilidade têm uma boa chance de darem certo.
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Por: John L. Allen Jr.,
Fonte: Crux
Tradução: Isaque Gomes Correa.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
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