A costumeira conversa do papa com os jornalistas durante o voo de retorno
a Roma, desta vez a partir da América Latina, durou cerca de uma hora. Foram
muitas as perguntas. O papa respondeu às primeiras três perguntas em espanhol e
as seguintes em italiano. E brincou que também poderiam ser feitas até em
guarani, uma das línguas oficiais do Paraguai.
Aníbal
Velásquez (ABC Color) – Santidade. Sou Aníbal Velázquez, do Paraguai. Nós lhe
agradecemos porque elevou o Santuário de Caacupé como basílica. Mas, no
Paraguai, as pessoas se perguntam: por que o Paraguai não tem cardeal? Qual é o
pecado do Paraguai, para que não tenha cardeal? Ou, em todo o caso, ainda está
longe de ter um cardeal?
Bem, não ter
cardeal não é um pecado (risos). A maioria dos países do mundo não tem
cardeais. A maioria. Ou seja, as nacionalidades dos cardeais, não me recordo
quantas são, mas são uma minoria em relação com o todo o conjunto. É verdade, o
Paraguai não teve nenhum cardeal até agora. Eu não saberia lhe
dar a razão. Às vezes, para a escolha de cardeais, equilibram-se, leem-se,
estudam-se os arquivos de cada um, vê-se a pessoa, o carisma, sobretudo do
cardeal, que deveria ser o de aconselhar o papa e ajudar o papa no governo
universal da Igreja. O cardeal, embora pertença a uma Igreja particular, é – e
daí a palavra – incardinado na Igreja de Roma e tem que ter
uma visão universal. Isso não quer dizer que no Paraguai não existem bispos que
a tenham. Podem tê-la, mas, como sempre, é preciso escolher até um certo número
– não se pode designar mais do que 120 cardeais eleitores – então, deve ser por
isso. A Bolívia teve dois. O Uruguai teve
dois – [Antonio María] Barbieri e o atual [Daniel
Sturla]. Alguns países centro-americanos também não tiveram.
Mas não é nenhum
pecado, e tudo depende das circunstâncias, das pessoas, do carisma para ser
incardinado. E isso não quer dizer um menosprezo ou que os bispos paraguaios
não têm valor. Há bispos paraguaios geniais. Eu me lembro dos dois Bogarín
que fizeram história no Paraguai [Juan Sinforiano
Bogarín (1863-1949) e Ramón Bogarín Argaña (1911-1976)].
Por que não foram cardeais? Bem, não foram. Não é uma ascensão, não é verdade?
Eu me faço outra pergunta: o Paraguai merece ter um cardeal, se olharmos para a
Igreja do Paraguai? Eu diria: mereceria ter dois, mas é pela outra razão, não
tem nada a ver com os méritos. É uma Igreja viva, uma Igreja alegre, uma Igreja
lutadora e com uma história gloriosa.
Priscila
Quiroga (Cadena A) e Cecilia Dorado Nava (El Deber, Bolívia) – Vossa Santidade,
por favor, interessa-nos conhecer o seu critério sobre se considera justo o
anseio dos bolivianos de ter uma saída soberana para o mar, de voltar a ter uma
saída soberana ao Oceano Pacífico. E, Santo Padre, no caso de o Chile e a
Bolívia pedirem a sua mediação, o senhor aceitaria?
A questão da
mediação é uma coisa muito delicada e seria como um último passo. Isto é, a Argentina
viveu isso com o Chile e foi realmente para evitar uma guerra.
Foi uma situação muito limite e muito bem conduzida por aqueles que a Santa
Sé encarregou – por trás dos quais sempre estava São João
Paulo II se interessando – e com a boa vontade dos dois países, qye
disseram: "Tentemos se isso vai dar certo". E é curioso, houve um
grupo, ao menos na Argentina, que nunca quis essa mediação, e, quando o
presidente Alfonsín fez o plebiscito sobre se se aceitava a
proposta de mediação, obviamente, a maioria do país disse que sim, mas houve um
grupo que resistiu. Sempre quando se faz uma mediação, dificilmente todo o país
estaria de acordo, mas é a última instância. Sempre há outras figuras
diplomáticas que ajudam nesse caso, facilitadores etc.
Neste momento,
eu tenho que ser muito respeitoso com isso, porque a Bolívia
fez um recurso a um tribunal internacional. Então, se eu, neste momento, faço
um comentário – eu sou chefe de um Estado –, poderia ser interpretado como
intromissão ou uma pressão, ou algo assim. Tenho que ser muito respeitoso com a
decisão tomada pelo povo boliviano que fez esse recurso. Eu também sei que
houve instâncias anteriores de querer dialogar. Não tenho muita clareza. A
pessoa que me disse algo desse estilo, que se estava perto de uma solução, foi
nos tempos do presidente chileno Lagos, mas disse sem ter dados
exatos. Foi um comentário que me foi feito pelo cardeal Errázuriz.
Assim, eu não gostaria de dizer uma 'bobagem' [macana] sobre isso.
Também uma
terceira coisa que eu quero deixar clara. Eu, na Catedral da Bolívia,
toquei esse tema de uma maneira muito delicada, tendo em conta a situação do
recurso ao tribunal internacional. Recordo perfeitamente o contexto: "Os
irmãos têm que dialogar, os povos latino-americanos têm que dialogar para criar
a pátria grande, o diálogo é necessário". Aí me detive, fiz um silêncio e
disse: "Penso no mar". E continuei: "Diálogo e diálogo".
Creio que deixei claro que a minha intervenção foi uma recordação desse
problema, mas respeitando a situação como está proposta agora. Estando em um
tribunal internacional, não se pode falar de mediação nem de facilitação. É
preciso esperar.
É justo
ou não o anseio dos bolivianos?
Sempre há uma
base de justiça quando há mudança de limites territoriais e, sobretudo, depois
de uma guerra. Há uma revisão contínua disso. Eu diria que não é injusto se
propor algo desse tipo, esse anseio. Eu recordo que, em 1961, estando no
primeiro ano de filosofia, passaram-nos um documentário sobre a Bolívia
– um padre que tinha vindo da Bolívia –, e eu acho que se chamava As
12 estrelas. Quantas províncias têm a Bolívia? (Respondem-lhe que são
nove departamentos.) Então se chamava As 10 estrelas. E
apresentava cada um dos nove departamentos e, no fim, o décimo departamento, e
se via o mar sem nenhuma palavra. Isso ficou gravado em mim, isso foi no ano
1961. Ou seja, vê-se que há um anseio. Claro, depois de uma guerra desse tipo,
surgem as perdas, e creio que é importante, primeiro, o diálogo, a saudável
negociação. Agora, neste momento, o diálogo está parado, obviamente, por causa
desse recurso a Haia.
Fredy
Paredes (Teleamazonas, Equador) – Vossa Santidade, boa noite, muito obrigado. O
Equador esteve convulsionado antes da sua visita. Depois que o senhor abandonou
o país, voltaram as pessoas que fazem oposição ao governo a sair às ruas.
Parece que a sua presença no Equador quer ser utilizada politicamente,
especialmente pela frase que o senhor pronunciou: "O povo do Equador se
pôs de pé com dignidade". Eu lhe pergunto de maneira pontual, se é que é
possível: a que essa frase responde? O senhor simpatiza com o projeto político
do presidente Correa? O senhor acredita que as recomendações gerais que o
senhor deu na visita ao Equador, visando a alcançar o desenvolvimento, o
diálogo, a construção da democracia, e não a continuar com a política do
descarte, como o senhor a denomina, já é praticada no Equador?
Evidentemente,
eu sei que havia problemas políticos e greves, eu sei disso. Não conheço os
meandros da política do Equador, e seria tolice da minha parte
que eu desse uma opinião. Depois, me disseram que houve como que um parêntese
durante a minha visita, pelo qual eu agradeço, porque é um gesto de um povo de
pé, respeitar a visita do papa. Agradeço e valorizo isso. Agora, se as coisas
voltam, evidentemente os problemas e as discussões políticas continuam. Com
relação à frase que você diz, eu me refiro à maior consciência que o povo
equatoriano foi tomando do seu valor. Houve uma guerra limítrofe com o Peru,
não faz muito tempo. Há histórias de guerra. Depois, uma maior consciência da
variedade de riqueza étnica do Equador. E isso dá dignidade.
O Equador
não é um país de descarte, ou seja, refere-se a todo o povo e a toda a
dignidade desse povo, que, depois da guerra limítrofe, se pôs de pé e tomou
cada vez mais consciência da sua dignidade e da riqueza da unidade na variedade
que tem. Ou seja, não se pode atribuir a uma situação concreta.Porque essa
mesma frase – me comentaram, eu não vi – foi instrumentalizada para explicar
ambas as situações: que o governo pôs o Equador de pé ou que
os contrários ao governo se puseram de pé. Uma frase pode ser
instrumentalizada, e nisso eu creio que é preciso ser muito cuidadoso. E eu lhe
agradeço a pergunta, porque é uma maneira de ser cuidadoso. Você está dando um
exemplo de ser cuidadoso.
Se vocês me
permitem – isso, como não me perguntaram, são cinco minutos a mais de concessão
que eu lhes dou, se fizerem falta –, é muito importante no trabalho de vocês a
hermenêutica de um texto. Um texto não pode ser interpretado com uma frase. A
hermenêutica tem que ser em todo o contexto. Há frases que são justamente a
chave da hermenêutica, e há frases que não são, que são ditas de passagem ou
são plásticas. Então, ver todo o contexto, ver a situação, inclusive ver a
história. Ver a história desse momento ou, se estamos falando do passado, interpretar
um fato do passado com a hermenêutica desse tempo. Ou seja, as Cruzadas:
interpretemos as Cruzadas com a hermenêutica como se pensava nesse tempo. É
chave interpretar um discurso, qualquer texto, com uma hermenêutica
totalizante, não isolada. Perdoem-me, não estou brincando de "professor
Sabe-Tudo". Mas eu digo isso como ajuda para vocês. Muito obrigado. Agora,
passemos ao guarani (risos).
Stefania
Falasca (Avvenire) – No discurso que o senhor fez na Bolívia aos movimentos populares, o senhor falou do novo colonialismo e falou da idolatria do
dinheiro que submete a economia, e da imposição dos meios de austeridade que
sempre apertam, como o senhor disse, o cinto dos pobres. Agora, há semanas,
nós, na Europa, temos esse caso da Grécia e do destino da Grécia que corre o
risco de sair da moeda europeia: o que o senhor pensa do que está acontecendo
na Grécia e que também diz respeito a toda a Europa?
Acima de tudo,
sobre a minha intervenção no congresso dos movimentos populares: é o segundo. O
primeiro foi feito no Vaticano, na Aula Velha do
Sínodo, havia cerca de 120 pessoas. É algo organizado pelo [Pontifício
Conselho] Justiça e Paz. Eu estou perto disso, porque
é um fenômeno em todo o mundo, em todo o mundo. Também no Oriente,
nas Filipinas, na Índia, na Tailândia.
São movimentos que se organizam entre si não só para fazer um protesto, mas
também para seguir em frente e poder viver. E são movimentos que têm força, e
essas pessoas, que são tantas e tantas, não se sentem representadas pelos
sindicatos, porque dizem que os sindicatos agora são uma corporação, não lutam
– agora estou simplificando um pouco –, mas a ideia de muitas dessas pessoas é
que eles não lutam pelos direitos dos mais pobres. E a Igreja não pode ser
indiferente. A Igreja tem uma Doutrina Social e dialoga com esse movimento, e
dialoga bem. Vocês viram o entusiasmo de sentir que a Igreja não está longe de
nós, a Igreja tem uma doutrina que nos ajuda a lutar por isso. É um diálogo.
Não é que a Igreja faz uma opção pelo caminho anárquico. Não, eles não são
anárquicos: eles trabalham, tentam fazer muitos trabalhos, também com os
resíduos, com as coisas que sobram. São trabalhadores de verdade. Essa é a
primeira coisa, a importância disso.
Depois, sobre a Grécia
e o sistema internacional: eu tenho uma grande alergia à economia, porque o
papai era contador e, quando não acaba o trabalho na fábrica, ele o trazia para
casa, no sábado e no domingo, com aqueles livros, daqueles tempos, em que os
títulos eram escritos em gótico... E trabalhava, e eu via o papai... E tenho
uma alergia. Eu não entendo bem como é a coisa, mas certamente seria simples
dizer: a culpa é apenas desta parte. Os governantes gregos que levaram adiante
essa situação de dívida internacional também têm uma responsabilidade. Com o
novo governo grego, chegou-se a uma revisão um pouco justa. Eu espero – é a
única coisa que eu posso lhe dizer, porque não sei bem... – que encontrem um
caminho para resolver o problema grego e também um caminho de supervisão para
que outros países não caim no mesmo problema, e que isso nos ajude a ir em
frente, porque esse caminho do empréstimo e das dívidas, no fim, não termina
nunca.
Disseram-me que,
há um ano, mais ou menos, mas não sei se... esta é uma coisa que eu ouvi... que
havia um projeto nas Nações Unidas (se algum de vocês sabe
disso, seria bom que explicasse), havia um projeto para o qual um país pode se
declarar em falência, que não é o mesmo que o default, mas é um projeto
que eu ouvi e que não sei como foi, se era verdade ou não. Digo isso para
ilustrar como uma coisa que eu ouvi, mas se uma empresa pode fazer uma
declaração de falência, por que um país não pode fazê-la, e assim se vai à
ajuda dos outros? Esses eram os fundamentos desse projeto, mas sobre
isso eu não posso dizer mais nada. Depois, quanto às novas colonizações:
evidentemente, vão todas sobre os valores. A colonização do consumismo. O
hábito do consumismo foi um progresso de colonização. Porque é o hábito: leva
você a um hábito que não é o seu e também desequilibra a sua personalidade. O
consumismo também desequilibra a economia interna e a justiça social, e também
a saúde física e mental, apenas para dar um exemplo.
Anna
Matranga (CBS News) – Vossa Santidade, uma das mensagens mais fortes dessa
viagem foi que o sistema econômico global muitas vezes impõe a mentalidade do
lucro a todo o custo, em detrimento dos pobres. Isso é percebida pelos
estadunidenses como uma crítica direta do seu sistema e do seu modo de vida.
Como o senhor responde a essa percepção? E qual é a sua avaliação do impacto
dos Estados Unidos no mundo?
O que eu disse,
essa frase, não é nova. Eu a disse na Evangelii
gaudium: "Essa economia mata". Dessa frase eu me
lembro bem, há um contexto. E eu a disse na Laudato
si'. A crítica não é uma coisa nova, como se sabe. Ouvi que
algumas críticas foram feitas nos Estados Unidos. Eu ouvi isso. Mas eu não as
li e não tive o tempo para estudá-las bem, porque cada crítica deve ser
recebida e estudada, para, depois, fazer o diálogo. Você vai me perguntar o que
eu penso, mas, se eu não dialoguei com aqueles que fazem as críticas, eu não
tenho o direito de fazer um pensamento assim, isolado do diálogo. Isso é o que
eu tenho a dizer.
O senhor
agora vai aos Estados Unidos. Tem uma ideia de como será recebido, tem algum
pensamento sobre a nação...
Não, devo
começar a estudar agora, porque até hoje eu estudei esses três países
belíssimos, que são uma riqueza e uma beleza. Agora, devo começar a estudar Cuba,
porque vou para lá dois dias e meio, e depois os Estados Unidos,
as três cidades do Leste – porque ao Oeste eu não posso ir –, Washington,
Nova York e Filadélfia. Sim, devo começar a
estudar essas críticas e, depois, dialogar um pouco.
Aura
Vistas Miguel – Santidade, o que sentiu quando viu aquela foice e martelo com Cristo em cima, oferecido pelo presidente Morales? E onde
acabou esse objeto?
É curioso, eu
não conhecia isso e nem sabia que o padre Espinal
era escultor e poeta até. Soube disso nestes dias. Quando o vi, para mim, foi
uma surpresa. Segundo, pode-se qualificar como o gênero da arte de protesto. Por
exemplo, em Buenos Aires, há alguns anos, foi exibida uma
mostra de um escultor bom, criativo, argentino, que agora está morto. Era arte
de protesto, e eu recordo um Cristo crucificado em um bombardeiro que caía. Era
uma crítica ao cristianismo aliado com o imperialismo, que bombardeia.
Então, primeiro,
eu não sabia; segundo, eu o qualificaria como arte de protesto, que, em alguns
casos, pode ser ofensivo. Em alguns casos. E terceiro, este caso concreto: o
padre Espinal foi morto no ano de 1980. Era um tempo em que a
teologia da libertação tinha muitos ramos. Um desses ramos propunha a análise
marxista da realidade. O padre Espinal pertencia a isso. Eu sabia disso, sim,
porque, nesses anos, eu era reitor na faculdade de teologia e se falava muito
disso, os diversos ramos e os representantes.
No mesmo ano, o
geral da Companhia de Jesus [Pe. Pedro Arrupe]
mandou uma carta para toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade na
teologia. Um pouco freando isso e dizendo: isso não está bem, são coisas
diferentes, não é justo, não está certo. E, quatro anos depois, em 1984, a Congregação
para a Doutrina da Fé publicou o primeiro documento, pequeninho, uma
primeira declaração sobre a teologia da libertação que critica isso. Depois,
veio o segundo, que abriu as perspectivas mais cristãs (estou simplificando,
hein). Ou seja, façamos a hermenêutica naquela época.
Espinal
era um entusiasta dessa análise da realidade marxista e também da teologia
usando o marxismo. Daí veio essa obra. As poesias de Espinal também era desse
gênero de protesto, mas era a sua vida, era o seu pensamento, era um homem especial,
com tanta genialidade humana e que lutava. Ele tinha boa fé. Fazendo uma
hermenêutica desse tipo, eu entendo essa obra. Para mim, não foi uma
ofensa, mas eu tive que fazer essa hermenêutica, e digo isso a vocês para que
não haja opiniões equivocadas.
Onde
ficou a cruz?
Eu a trago
comigo. O presidente Morales quis me dar duas condecorações, a
mais importante da Bolívia e a outra é a ordem do padre
Espinal, uma nova ordem. Jamais aceitei uma honorificência, não sei, não me
sinto bem. Mas ele fez isso com tanto vontade, com boa vontade e com o prazer
de me dar um prazer, e eu pensei que isso vem do povo da Bolívia e rezei para
saber o que fazer com isso. Se eu as levo ao Vaticano, vão
parar no Museu, vão acabar aí, e ninguém jamais vai vê-las. Então, pensei em
deixá-las à Nossa Senhora de Copacabana, a mãe da Bolívia, que
vão para o santuário, ficarão no santuário. Ao contrário, o Cristo, eu
trago comigo.
Anaïs
Feuga – Durante a missa em Guayaquil, o senhor disse que o Sínodo devia fazer
amadurecer um verdadeiro discernimento para encontrar soluções concretas para
as dificuldades das famílias. E, depois, pediu que as pessoas rezassem para que
até mesmo aquilo que nos parece impuro, nos escandaliza ou nos assusta, que
Deus possa transformar em milagre, o senhor disse. Pode nos especificar a quais
situações "impuras" ou "assustadoras" ou
"escandalosas" o senhor se referia?
Aqui também eu
farei a hermenêutica do texto. Eu estava falando sobre o milagre do bom vinho e
disse que as ânforas de águas estavam cheias, mas eram para a purificação. Ou
seja, cada pessoa que entrava naquela festa fazia a sua purificação e deixava
as suas sujeiras espirituais. É um rito de purificação antes de entrar em uma
casa, ou mesmo no templo. Um ritual que nós, agora, temos na água benta:
permaneceu isso daquele rito judaico. Eu disse justamente que Jesus
faz o melhor vinho com a água das sujeiras, do pior. Em geral, pensei em fazer
este comentário: a família está em crise, todos nós sabemos disso, basta ler o Instrumentum
laboris que vocês conhecem bem, porque foi apresentado, está lá. A
tudo isto eu fazia referência, em geral: que o Senhor nos purifique dessas
crises, de tantas coisas que estão descritas naquele livro do Instrumentum
laboris. É uma coisa em geral, não pensei em nenhum ponto
particular: que nos faça melhores, nos faça famílias mais maduras... melhores.
A família está em crise, que o Senhor nos purifique e vamos em frente. Mas as
particularidades dessa crise estão todas no Instrumentum laboris
do Sínodo que acabou, e vocês o têm.
Javier
Martínez Brocal (Rome Reports) – Santidade, muito obrigado por este diálogo que
nos ajuda tanto pessoalmente e também no nosso trabalho. Faço a minha pergunta
em nome também de todos os jornalistas de língua espanhola. Vimos como deu
certo a mediação
entre Cuba e os Estados Unidos. O senhor acha que se pode fazer algo
semelhante em outras situações delicadas do continente latino-americano? Penso
na Venezuela e também na Colômbia. Depois, uma curiosidade: penso no meu pai,
que tem alguns anos a menos do que o senhor, mas tem a metade das energias.
Vimos isso nesta viagem, vimos isso nesses dois anos e meio. Qual é o seu
segredo?
Qual é a sua
"droga", ele gostaria de perguntar... (risos). É, essa era a
pergunta! (risos) O processo entre Cuba e os Estados
Unidos não foi mediação. Não teve o caráter de mediação. Havia um
desejo que tinha chegado. Por outro lado, também, desejo... E, depois, digo a
verdade, isso foi em janeiro do ano passado, e depois se passaram três meses em
que eu só rezava sobre isso, não me decidi: mas o que se pode fazer com esses
dois, depois de mais de 50 anos que estão assim? Mas depois o Senhor me fez
pensar em um cardeal. Ele foi lá, falou, e depois eu não soube de nada.
Passaram-se meses, e, um dia, o secretário de Estado (que está aqui) me disse:
"Amanhã teremos a segunda reunião com as duas equipes" – "Mas
como ?" – "Sim, eles se falam, entre os dois grupos se falam e estão
fazendo...". Foi sozinho, não foi mediação, foi a boa vontade dos dois
países: o mérito é deles, são eles que fizeram isso. Nós não fizemos quase
nada, apenas pequenas coisas, e, em meados de dezembro, foi anunciado. Essa é a
história, de verdade, não há mais.
Preocupa-me
neste momento que não pare o processo de paz na Colômbia. Isso
eu tenho que dizer isso e espero que esse processo vá em frente, e, nesse
sentido, nós estamos sempre dispostos a ajudar, de muitos modos de ajuda. Mas
seria uma coisa ruim que não pudesse ir em frente. Na Venezuela,
a Conferência Episcopal trabalha para fazer um pouco de paz, mas ali também não
há nenhuma mediação. Na questão dos Estados Unidos, foi o Senhor e duas coisas
por acaso, e depois foi em frente sozinho. Para a Colômbia, eu
espero e rezo, e devemos rezar, para que não pare esse processo. É um processo
que dura mais de 50 anos ali também, e quantos mortos! Ouvi dizer que são
milhões. Sobre a Venezuela, não tenho mais nada a dizer para você. Ah... a
"droga". Mas... o mate me ajuda, mas não provei a coca. Isso é claro,
hein!
Ludwig
Ring-Eifel (KNA) – Santo Padre, nesta viagem, ouvimos tantas mensagens fortes
para os pobres, também tantas mensagens fortes, às vezes severas, para os ricos
e os poderosos, mas uma coisa que ouvimos pouquíssimo foram mensagens para a
classe média, isto é, as pessoas que trabalham, as pessoas que pagam os
impostos, as pessoas normais, portanto. A minha pergunta é: por que no
magistério do Santo Padre há tão poucas mensagens para essa classe média? E, se
houvesse tal mensagem, qual seria?
Muito obrigado,
é uma bela correção, obrigado! Você tem razão, é um erro da minha parte.
Devo pensar sobre isso. Farei alguns comentários, mas não para me justificar.
Você tem razão, eu devo pensar um pouco. O mundo é polarizado. A classe média
torna-se menor. A polarização entre ricos e pobres é grande, isso é verdade, e
talvez isso me levou a não levar em conta isso. Falo do mundo, alguns países
não, vão muito bem, mas no mundo em geral a polarização se vê, e o número dos
pobres é grande. Depois, por que eu falo dos pobres? Mas porque está no
coração do Evangelho, e eu sempre falo a partir do Evangelho sobre a pobreza,
embora seja sociológica. Depois, sobre a classe média, há algumas
palavras que eu disse, mas um pouco en passant. Mas as pessoas
simples, as pessoas comuns, o operário... esse é um grande valor. Mas eu acho
que você me diz uma coisa que eu devo fazer, devo aprofundar mais o magistério
sobre isso. Eu lhe agradeço pela ajuda, hein! Obrigado!
Vania De
Luca (Rainews 24) – O senhor, nestes dias, insistiu na necessidade dos
percursos de integração, de inclusão social, contra a mentalidade do descarte.
Também defendeu projetos que vão nessa direção do viver bem. Embora o senhor já
nos tenha dito que ainda deve pensar na viagem aos Estados Unidos, o senhor
acha que vai tocar nesses temas na ONU, na Casa Branca? Pensava também nessa
viagem quando falou dessas problemáticas?
Não, eu pensava
apenas nesta viagem concreta e no mundo em geral. Mas a dívida neste momento
dos países do mundo é terrível. Todos os países têm dívidas, e há um ou dois
países que compraram as dívidas dos grandes países. É um problema mundial. Mas,
com isso, não pensei particularmente na viagem para os Estados Unidos.
Courtney
Walsh (Fox News) – Santidade, falamos um pouco de Cuba, aonde o senhor vai em
setembro, antes de ir para os Estados Unidos, e do papel que o Vaticano teve na
sua aproximação. Agora que Cuba terá um papel maior na comunidade
internacional, na sua opinião, Havana deverá melhorar a sua reputação no respeito
dos direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa? E o senhor acredita que
Cuba corre o risco de perder algo nessa nova relação com o país mais poderoso
do mundo?
Mas os direitos
humanos são para todos e não se respeitam os direitos humanos apenas em um ou
dois países. Eu diria que em muitos países do mundo não se respeitam os
direitos humanos, em tantos países do mundo! E o que Cuba
perde e o que os Estados Unidos perdem? Todos os dois vão
ganhar algo e vão perder algo, porque em uma negociação é assim. Mas o que
todos os dois vão ganhar é a paz. Isso é certo. O encontro, a amizade, a
colaboração: esse é o ganho. Mas o que vão perder, eu não consigo pensar, serão
coisas concretas, mas sempre em uma negociação se ganha e se perde. Mas
voltando aos direitos humanos e à liberdade religiosa: pensem, no mundo, há
países, também alguns países europeus, que não deixam você fazer um sinal
religioso, não? Por diversos motivos, não? E, em outros continentes, o mesmo,
não? Sim, isso. A liberdade religiosa não é respeitada em todo o mundo. Há
tantos países e que isso não acontece.
Benedicte
Lutaud – Vossa Santidade, o senhor se coloca como o novo líder mundial das
políticas alternativas. Eu gostaria de saber por que o senhor aponta tanto para
os movimentos populares e menos para o mundo da empresa. E se o senhor pensa
que a Igreja irá segui-lo na sua mão estendida aos movimentos populares que são
muito seculares.
Obrigado! O
mundo dos movimentos populares é uma realidade. É uma realidade muito grande,
em todo o mundo. Eu, o que fiz? O que eu fiz foi lhes dar a Doutrina
Social da Igreja, o mesmo que eu faço com o mundo da empresa. Existe
uma Doutrina Social da Igreja. Se você ler o que eu disse aos
movimentos populares, que é um discurso bastante grande, é um resumo da
Doutrina Social da Igreja, mas aplicada à sua situação. Mas é a Doutrina Social
da Igreja. Tudo o que eu disse é Doutrina Social da Igreja, e quando eu devo
falar com o mundo da empresa, eu digo o mesmo, isto é, o que a Doutrina Social
da Igreja diz sobre o mundo da empresa. Por exemplo, na Laudato si',
há uma parte sobre o bem comum e também sobre a dívida social da propriedade
privada que vai nesse sentido; mas é aplicar a Doutrina Social da Igreja.
O senhor
acha que a Igreja vai lhe seguir nessa mão estendida?
Sou eu
que sigo a Igreja aqui, porque simplesmente prego a Doutrina Social da Igreja a
esse movimento. Não é uma mão estendida com um inimigo, não é um fato
político, não. É um fato catequético. Eu quero que isso fique claro. Obrigado.
Cristina
Cabrejas – Santo Padre, o senhor não tem um pouco de medo que o senhor e os
seus discursos sejam instrumentalizados pelos governos, pelos grupos de poder,
pelos movimentos. Obrigado.
Um pouco eu
repito o que disse no início. Cada palavra, cada frase de um discurso pode ser
instrumentalizada. É o que o jornalista equatoriano me perguntava. Justamente a
mesma frase, alguns diziam que era pró-governo, e os outros, que era contra o
governo. Por isso, eu me permiti de falar da hermenêutica total. E sempre são
instrumentalizadas. Às vezes, vêm notícias que tomam uma frase e ainda fora do
contexto. Sim, eu não tenho medo, simplesmente digo: olhem para o contexto!
Se eu erro, com um pouco de vergonha, peço desculpas e vou em frente.
Permita-me
uma brincadeira: o que o senhor pensa de todas essas autofotos, selfies,
no meio da missa, que se fazem os jovens, as crianças, os colegas?
O que eu penso?
É outra cultura. Eu me sinto um bisavô! (risos) Hoje, ao me despedir, um
policial, grande, deveria ter uns 40 anos, me disse: "Faço um selfie".
Eu lhe disse: "Mas você é um adolescente!" (risos) Sim, é outra
cultura, mas eu a respeito.
Andrea
Tornielli – Santo Padre, em síntese, que mensagem o senhor quis dar à Igreja
latino-americana nesses dias? E que papel pode ter a Igreja latino-americana,
também como sinal no mundo?
A Igreja
latino-americana tem uma grande riqueza: é uma Igreja jovem, e isso é
importante. Uma Igreja jovem com um certo frescor, até com algumas
informalidades, não tão formal. Também tem uma teologia rica, de pesquisa. Eu
quis dar ânimo a essa Igreja jovem e acredito que essa Igreja pode dar muito
para nós. Digo uma coisa que me tocou muito. Em todos os três países, todos os
três, havia ao longo das estradas os pais, as mães com as crianças: mostravam
as crianças. Nunca vi tantas crianças, tantas crianças. É um povo – e também a
Igreja é assim – que é uma lição para nós, para a Europa, onde
a queda dos nascimentos assusta um pouco, e também as políticas para ajudar as
famílias numerosas são poucas. Penso na França, que tem uma bela
política para ajudar as famílias numerosas e chegou, creio, a mais de 2% [da
população com menos de 40 anos], enquanto outros estão perto do zero. Embora
nem todos, acho que na Albânia, é de 45%. Mas, no Paraguai,
mais de 70% da população têm de 40 anos para menos.
A riqueza desse
povo e também dessa Igreja é que se trata de uma Igreja viva, uma Igreja de
vida. Isso é importante. Creio que nós devemos aprender com isso e corrigir,
porque, ao contrário, se não vierem os filhos... É o que me toca tanto do
"descarte": descartam-se as crianças, descartam-se os idosos, com a
falta de trabalho descartam-se os jovens. Por isso, os povos novos, os povos
jovens nos dão mais força. Para a Igreja, que eu diria que é uma Igreja jovem –
com muitos problemas, porque tem problemas –, eu acho que esta é a mensagem que
eu encontro: não ter medo dessa juventude e desse frescor dessa Igreja. Pode
até ser uma Igreja um pouco indisciplinada, mas, com o tempo, vai se
disciplinar, e nos dá tanta coisa boa.
Radio Vaticano
Tradução: Moisés Sbardelotto.
Disponível em: Instituto Humanitas Unisinos
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